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sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O monstro, a geometria e a gargalhada

 


Na avenida primavera, nos arredores dos símbolos francófonos, a praça Charles de Gaulle e o arco do triunfo, moram os afortunados do novo regime liberal, cento e quarenta anos depois da primeira experiência liberal do país, desta fez abençoada pelas grandes potências do ocidente.
No parque Herastrau, do outro lado da avenida, as esplanadas enchem-se de gente cheirosa e sofisticada, espraiam-se pelas poltronas e pelos bancos de jardim, enquanto os miúdos lançam-se nas trotinetes para cima das paredes de parcours e há bom gosto e vidas despreocupadas que povoam as esquinas que fumegam cappuccinos, cheiram a chocolate quente (ou apenas a chocolate) e muitos miúdos que parecem nascer a quem mudam as fraldas nos intervalos de uma existência dominical burguesa. 
Na primavera da cidade viveu o ditador, mas quinhentos metros antes nasceu, há cinco anos, o museu de arte recente, uma realidade mutante, não fosse a vanguarda um conceito, por definição, sempre ultrapassado. 
Na origem, o piso térreo forrado de vidro contrariava o tijolo negro que cobria a parte superior do edifício, uma imagem do obscurantismo do passado recente e a irreverência do presente espelhado no interior sinuoso de corredores estreitos e salas escondidas entre a noção tradicional de piso. 
Cinco anos passados, a exposição o monstro, a geometria e a gargalhada é premonitória e parte do arcaico, como a forma de tornar visível o sagrado, através de imagens monstruosas e geométricas que se transformam em riso e sarcasmo, um humor negro que é a estratégia de sobrevivência de um povo que vive nesta região geográfica, uma válvula de pressão para a alma que pode tornar a vida, vivida através da gargalhada, muito mais tolerável. 
Segundo as suas próprias palavras.
Mais a sul, na praça da unidade (há uma em todas as cidades e consta que em todas elas foi renomeada), estamos de volta à cidade do povo, há uma multidão que faz fila nos restaurantes de take away e é um dia de celebração das memórias, ramos de flores nas mãos dos rostos que transparecem crença, percebemos que quinze minutos de metro para sul são o tempo que separa a nova elite do mesmo povo que sempre sobrevive às contingências da história. 
"Assim seja", assim se conformam os romenos, perante os golpes do destino e os factos incontroláveis.
Mas a multidão circula em torno do jardim, ninguém se aventura pela avenida da unidade, na direção da praça da constituição, porque preferem ver as sombras, de uma distância segura. 
O palácio do Parlamento faz parte de uma história que preferiam que tivesse acontecido aos outros, mas prevaleceu o bom senso, até porque ninguém mais suporta que se reescreva a história, eliminando as partes incomodas, ou simplesmente as que não se enquadram nas novas visões do passado vistas a partir do presente. 
Nele (no palácio) habitam os novos pilares da democracia, que pagam o essencial dos milhares de quilos de lustres fabricados pelos romenos (numa fábrica construída para o efeito), porque tudo neste palácio é nacional, e depois (pragmatismo de estado) alugam o espaço a todo o tipo de eventos que ajudem a pagar um milhão de euros de utilities por mês. 
(E aceitam sugestões para novas e radicais atividades lúdicas que caibam no espaço) 
E assim não se transformou no maior casino do mundo, promessa do americano que, não é certamente, o melhor amigo da Europa. 
E, enquanto assistíamos a um concerto de homenagem ao compositor romeno, Valentim Gheorghiu, ouvíamos a música do génio e recuperávamos todas as imagens da nova pátria que enfrenta os Cárpatos como uma desafio () e não como um destino. 
Há uma Roménia que parece recusar-se a ficar presa na história, mas a futura catedral ortodoxa da salvação do povo revela que a tendência para a desmesurada grandeza é mesmo sanguínea. 
Afinal é possível falar de Bucareste sem falar de Ceaucescu, agora que deixamos  o palácio do Parlamento para trás.



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