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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Numa outra dimensão

 


Acordámos no dia menos um a olhar para o meio da praça, para a estátua do mártir Levski, que viveu cedo de mais para ser um herói e acabou enforcado, cinco anos antes da independência. 
Apesar de haver a consciência nacional de que a nação chega frequentemente atrasada aos seus compromissos – quase tão institucional como o Hino - no caso do republicano Vasil, o fundador do Comité Central, destinado para preparar, a partir da Roménia, a revolução contra o domínio otomano, ele chegou demasiado cedo para conspirar em território búlgaro e foi preso e enforcado em 1873.
Também para nós, aterrar em Sofia num voo noturno e chegar de noite demasiado precoce para ser manhã, mas demasiado tarde para ser noite, primeiro uma vista aérea das ruas desertas da cidade, uma cidade com iluminação tão frugal que parece que se apaga à medida que o táxi avança pelas avenidas dos subúrbios, sim, parece uma cena de espionagem filmada do outro lado da guerra fria, o chauffeur de táxi só conhecia o cirílico, prédios cinzentos, há um suspense a cada cruzamento que atravessa, em cada semáforo que passa a vermelho e finalmente chegados ao hotel de luxo, um luxo antigo, repleto de alcatifas moles e paredes forradas a madeiras nobres, um refúgio em que a música de fundo é sempre americana – tenho sempre esta imagem de duplicidade da guerra fria -  e antes do tempo, pré datada, uma alma velha, como afirmariam os especialistas, para nós que tínhamos obliterado uma noite inteira e não tínhamos portanto chegado a sonhar, foi o regresso a uma dimensão que só conhecemos numa outra vida.
Em Sófia, temos frequentemente a sensação de estarmos a levitar numa cápsula do tempo, um lugar em que nada parece corresponder ao tempo certo, antes do tempo no futuro que não aconteceu, provavelmente resultado do sacrifício precoce da escassez de heróis e de momentos gloriosos na História.
Mas quando ligamos o som da cidade ficamos congelados num passado, expostos aos avançados sinais dos tempos.
E os sons da Bulgária são antigos, existe um rasto de século vinte na musica de fundo do autocarro que nos tira do avião, nas fotografias a preto e branco das celebridades que enchem as paredes do restaurante do hotel, no ranger das curvas dos elétricos, uma cidade pejada de cabos e carris, no rádio do taxista que nos transporta, madrugada dentro, a estação ferroviária de Sever e há todo um mundo que está em vias de extinção, como os comboios lentos, em compartimentos de oito lugares, uma excentricidade de quem não deve ter bitola europeia que range em cada curva, a aguardar o anunciado comboio de alta velocidade que rasgará a Bulgária, de Istambul a Budapest, uma nova modernidade a caminho do expresso do Oriente.
E esta cápsula do tempo que se chama Sófia revela-se, uma manhã de cada vez, para lá das cortinas baixas do restaurante do hotel, que parecem querer dar-nos tempo para nos habituarmos a este sereno regresso ao passado.
E nós aproveitamos o tempo que a cidade nos dá e a cápsula, que preserva a nossa privacidade, mas não nos priva dos sons da descoberta, ziguezagueia entre as memórias da libertação e as indulgências das vidas comuns.
Ambiguidades felizes.
Na nuvem de fumo que joga xadrez no jardim da cidade, em frente ao Teatro Nacional Ivan Vazov, há dois que jogam e uma multidão que fuma, que dá opinião e que enche de fumo os jogadores, o ar puro do parque e as famílias inteiras de domingo à tarde.
Nos velhos que mendigam um pouco do esquecimento que o novo regime votou a quem vivia com pouco, mas só conhecia o garantido, e é uma imagem que não há geração que dissipe, uma herança que vem do Leste.
Sobraram alguns museus, outros mosteiros ou bilheteiras de transportes públicos e todos os outros que vagueiam pelos nenhuns lugares.
Tanto tempo depois, ainda há os expelidos do regime e os elétricos da utopia socialista, fotogénicos, mas pouco eficazes pois segundo Hristo eles eram bons a gastar, mas não faziam ideia de como se ganhava dinheiro, pelo menos o que querem gastar. 
Mas há uma nova movida jovem que povoa a paisagem encardida, os elétricos do realismo construtivista, os blocos de apartamentos construídos para alojar as famílias sobrelotadas que vieram alimentar as utopias industriais do regime, sem a consciência histórica do que isso representou para os seus pais. 
Dualidades que não deixam de nos intrigar.
No final da tarde de segunda-feira, somos envolvidos pela multidão de jovens que saem da escola e se cumprimentam com universais choques de punhos, e conversam muito, não há, naquele passeio da cidade fora dos seus limites, telemóveis nem redes sociais que bloqueiem a animação e os abraços, não fosse o cirílico a primeira língua não latina a ser lida ao papa, em Roma.
Mas em Sófia, a idade é um tempo relativo. 
Uma capital criada pelo terceiro império (talvez só dinastia porque o império foi reduzido à pequenez que a memória não conhecia) e, a partir de uma aldeia de doze mil habitantes e umas quantas estalagens, construiu-se uma metrópole que cresce, mas nunca envelhece, segundo os próprios. 
E, quando nos libertámos da cápsula do tempo, em direção ao presente, sentados na antecâmera do futuro, no restaurante que teimava em chamar-se Cosmos, a iluminação simulava os planetas de uma galáxia desconhecida, mas radiante, e o vinho búlgaro, o sorriso da miúda que servia a mesa, os sabores do prato e Pavlova final eram cósmicos.
E na última ceia de Sófia, entendemos que o orgulho deles se constrói de pequenos triunfos.






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