K. não nos olhava de frente. Nunca, nem mesmo
quando percebeu que era um dos eleitos da véspera do dia da república, entre
dezenas de bicicletas na mão, rostos encardidos da vida e carregados pelo peso
de toda uma cidade que os empurra e lhes apita.
Nunca saberemos quantas horas ou
quantos dias, precisará K. para ganhar outra
corrida de ciclo riquexó, dois quilómetros e meio até ao Ganges e voltar, cem
rupias de gorjeta garantida e, quem sabe, mais cem pelo esforço e pela ostentação
da miséria humana e da precariedade da sua existência.
Há muito que a anestesia do
movimento frenético se apoderara da nossa auréola imperial.
(A auréola imperial é uma
representação artística de quem exerce o poder por instruções divinas, ou
outras)
No nosso caso, outras!
Mas quando K. (por simplificação grosseira
e por dignidade mínima) pegou numa criança de colo e a poisou no quadro
dianteiro deste ciclo riquexo encardido e cansado, e o lançou para o trânsito, seguro
a si próprio no volante, entre os travões e a campainha, rodeado de um abraço
impotente e de pézinhos pousados no travão da frente, voltei a sentir as dores
do pós-operatório.
Tinha um blusão de pelo verde e
um gorro vermelho.
Sem rosto, sem sinais de
infância, o miúdo não tinha mais de dois anos.
Ser a cidade sagrada para os
hindus e a capital de Shiva , ser um dos quatro locais sagrados do budismo, viver
nas margens do mais sagrado de todos os sete rios sagrados, não lhe concede
qualquer estado de graça que permita a Benaris prostrar-se em estado permanente
de reflexão diante das águas do rio e os templos recolhidos na cidade velha.
Regressámos ao rio, pisando os
espaços vazios que sabíamos não ser nossos, que se disputavam ao segundo e que
fluíam como um rio que corre para o mar imenso em dia de monções.
Parar não é possível, como as
velas que lançámos ao Ganges, que um miúdo de sete ou oito anos nos vendia por
dez rupias, enquanto saltava de barco para barco, fosse ao nascer ou ao por do
sol, com aquela expressão de pequeno homem que se constrói sozinho, à sombra do
rio.
E ninguém estranhava que o ser –
que os hindus ainda consideram não ter atingido a maturidade – de blusão verde
e gorro encarnado, enfrentasse o polícia de trânsito, que se encurralava num
entroncamento improvisado e, de bastão no pulso, concedia uns pequenos
privilégios de prioridade a quem mais – e mais longe – se atrevesse.
E o pai atrevia-se, lutava com os
dois pés contra as falhas de asfalto, que derrapavam a bicicleta e o atrasavam
do fim do trajeto.
E o ser imaturo era a sua
bandeira, provavelmente o seu Deus, mas não era a sua proteção pois os mortais
não lhe concediam tréguas, não fosse o pai o elo mais lento e menos protegido desta
torrente de gente, de vida e de som, sem conflitos e num caos tão sereno quanto
a espiritualidade do rio.
Afinal de contas, isto não é uma
guerra, é apenas a vida das pessoas.
Mesmo quando a cidade venera
Shiva, o Deus da destruição, é em Vishnu que a cidade se inspira.
Mesmo que a cidade viva do rio.
E, junto ao rio, antes da manhã
acordar a vida terrena, a crença é intensa, os homens mergulham no rio com uma
fé compulsiva, as mulheres avançam rio dentro com longos e coloridos vestidos e os remadores bebem pequenos goles de água sagrada, enquanto
largam os remos na certeza que a corrente não levará os turistas para o mar.
O rio laranja inunda os gaths
mas, naquele momento que precede o nascer do sol, suspendem-se as correntes, ignoram-se
as ondas e suspendem-se os ruídos da cidade.
Só quando se acendem as piras,
renasce Shiva e a surpresa de que afinal o Ganges é o rio da morte ou, se a
crença for imensa, da libertação da alma.
E vistos do rio, os dez funerais
desta noite, acesos em fogueiras que queimam lentamente a materialidade do
Homem, transformaram o gath num apocalíptico agora.
Entre o místico e o surreal, lançámos
as nossas velas ao rio, entregámos a alma a Brahma e perdemos a auréola
imperial.
E o pequeno não caiu nem chorou e
não lhe vimos os olhos, nem no beco esconso onde se acotovelavam os colegas de
profissão do pai que procuravam lembrar-lhe – efémero, é verdade - da sua
infância, nem perante o desfile das desgraças humanas que se arrastavam pelas
bermas, noite dentro de regresso do rio sagrado.
Só no final da viagem, depois de
enfrentarmos de frente um comboio de luzes que apitavam e avançavam direito a
nós a um ritmo de enxurrada, se descobriu o gorro.
Sem expressão.
Nem do pai diante das rupias, nem
do filho perante as demasiado precoces provas de vida.
Indiferente ao peso do nascimento
pelo destino, o asfalto continuava a trepidar de luzes e sons, sem direção nem
velocidade definidas.
E enquanto o rio adormecia, as
mesquitas chamavam os fiéis muçulmanos para a oração das sete da noite.
Fantástico Nuno!
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