Cai um frio de quebra ossos na
noite viking
Copenhaga, -4ºC.
Kokkedal Slot? A hesitação e a
inépcia em lidar com o tom tom confortavelmente instalado no veículo que nos
resgatara do frio, minutos antes da congelação final, não nos levantou
suspeitas, tal era o frio e tal era a confiança cega na civilização nórdica.
Estamos na Dinamarca e aqui, na
civilização, ninguém se perde (ou ousa perder)
Mas Kokkedal Slot está a meio
caminho do fim do mundo e o taxista hesita…
Tão estrangeiro como nós? – A
ideia trespassa-nos o cubo de gelo que obstruía os neurónios nas nossas partes
altas!
28 quilómetros para o destino,
pareceu-lhe uma longa distância, pareceu-nos que não fazia ideia do que estava
a ver no ecrã encriptado do GPS em dialeto nórdico, provavelmente dinamarquês,
dadas as coordenadas. 28 quilômetros pareceu-nos ( a nós e a ele) uma
eternidade…de centenas de coroas, daquelas moedas de buraco ao meio, que valem
mais do que o metal que contêm!
Não, apenas o cuidado de não
falhar, uma reconfirmação necessária de quem presta serviço e se preocupa com o
destino dos clientes!
O tom tom finalmente arranca e o
mapa da cidade, cheio de cor na branca noite escura da cidade, as ruas marcadas
a vermelho, as margens a amarelo, como se fosse um videojogo de vilão em riste,
trespassando as ruas cada vez mais desertas, luzes laranjas que aceleram nas
bermas da estrada, iluminando de forma cada vez mais ténue as fachadas austeras
da cidade geométrica.
A (o) meia-noite (meio da noite,
imaginamos que a luz, senão o sol, já desaparecera há mais de – quase - um dia)
aproxima-se, e a malta civilizada prepara-se para regressar ao seu universo pessoal
do chão aquecido e dos edredons de penas
Começam a sobrar dos outros...
Segundo os locais, são suecos e
noruegueses bárbaros a procura de bebida barata
(Barata? Uma arrojada metáfora
para quem se assume como os únicos nórdicos continentais)
A confiança do taxista aumentava com a
ausência de queixas do tom tom e as queixas do frio são a sua forma de quebrar
o gelo…
“ O frio é nosso amigo…atrai
clientes…”
“… O gelo é nosso inimigo”
As incoerências do homem (mas
afinal o frio é mau, ou é quente?) são uma fonte de inspiração da condição
humana.
E da circunstancial conversa do
frio, aproveita para nos explicar que antes (uau, afinal o tipo se calhar não é
estrangeiro), este antes revela antiguidade e competência no posto, o frio
chegava mais tarde…
“Aquecimento global!” – Foi a
ponte encontrada para o monólogo que se adivinhava entusiástico, qual
panfletário “ os americanos…” e eu olhava de soslaio para o tom tom,
certificando-me de que a linha vermelha não desaparecia do ecrã, “…não
acreditam no efeito estufa…” e eu pensava “O que virá a seguir?” e ele não me
desiludia “ …se experimentassem ligar o automóvel dentro de casa com as portas
e as janelas fechadas…morriam todos em quinze minutos…acham que a mãe natureza
tudo aguenta, mas não…”
Ups! Lembrei-me da sua tez morena
e a pergunta desenrolou-se qual língua sem vontade própria
“De onde vens?”
“Irão, 21 anos”
E eu fiquei a imaginar a ira do
Imã!
Mas ele dirigia cautelosamente,
sem qualquer emoção descontrolada.
O meu olhar enregelado (seria do
frio ou da forte coincidência sugestiva?) despertou-lhe a compaixão ou o senso
prático e politicamente correto de vinte e um anos de vivência no exílio
dourado, num país em que “ quem tem emprego está bem”
“Nós (iranianos) somos um povo
horrível… lavagem cerebral, enganam o estado, não pagam impostos (pagar
impostos é bom) …”
Eu não tinha certezas…se era bom
pagar impostos, se este tipo era real, quão bizarra era a anatomia de um
iraniano de integração nórdica.
“…Aplicam a justiça pelas
próprias mãos, sempre de gatilho armado…têm facilidade em matar”
E a linha vermelha começava a divergir
de forma que nem as legendas dinamarquesas conseguiam camuflar.
“Enganei-me!” Pois, eu também
percebi
“ Devia ter apanhado a
autoestrada de Helsingor” Pois, todos percebemos
Recuperado do engano, provocado
pelo seu excesso de zelo, apontou – sempre hesitante – para uma nova
alternativa vermelha, e eu percebi que a orientação não era o seu forte
Perdidos à saída da capital!
“Por aqui são mais quilômetros,
mas eu desligo o taxímetro quando chegar ao Km 22,5…”
Melhor a aritmética que em
orientação e nesta fase eu estava prestes a entender porque é que entre
Portugal e a Dinamarca há milhares de quilômetros de diferenças, e certamente
os primeiros automóveis sem condutor nascerão neste ninho de tecnologia quase
espacial.
Força Irão! Deixa-te ir! Conduzes
como se estivesses no espaço.
Encaixado numa nova linha
vermelha, mais pronunciada e curvilínea do que devia, agora perfurava com o
halogénio a floresta de troncos que bordejavam a estrada, escuro como breu e
semáforos ligados em cruzamentos plantados no silêncio e na ausência absoluta
de transeuntes.
“Terrível, um povo que não
presta. O meu irmão, que vive na América quis lá voltar e eu avisei-o…deu-me
razão…veio embora, sem vontade de voltar”
“É um problema de vizinhança, têm
maus vizinhos…e todos eles acham que os vizinhos são maus…aqui temos a
Alemanha”
Também tu, Brutus!
“ Nunca a democracia vai vingar
nestes países…Egito, Síria…”
Ele tinha definitivamente
opinião, sustentada e abrangente e, para já, não estávamos em risco; circulava
vagarosamente (é o gelo, sabem!?) numa interminável reta e a linha vermelha não
vacilava
“ Eu não acredito em religião e
os extremistas não permitem que as pessoas vivam em liberdade…é preferível que
fiquem lá os ditadores”
Voltavam os cruzamentos, as
casas, mas não sinal do mar (e devia haver), não se vislumbravam referências
familiares para quem, como nós, já por ali devíamos ter passado hoje.
“ Eu li sobre todas as religiões,
primeiro judeus, depois cristãos e a seguir muçulmanos, todos com a mesma
origem comum e todos se guerreiam…por isso não acredito em religião”
Vinte quilômetros depois,
soubeste que eu era português – para um estrangeiro que já não é estrangeiro e
que fala inglês com quem ele entende que não é, de todo, inglês, perde
facilmente a noção de que podem haver estrangeiros naquele local ermo e (agora)
desconsolado –
“ Há muitos portugueses na
Dinamarca…” estava na hora do interlúdio de simpatia para a nação lusitana, “…engenheiros,
na restauração e são muito apreciados” agora é que eu já não percebia se ele
era um iraniano integrado ou um nórdico com remotas reminiscências persas.
“Vou desligar o taxímetro, não
quero que fiques prejudicado, o meu patrão vai entender”
Mas o caminho permanecia pouco
familiar e a linha vermelha aproximava-se perigosamente do destino registado e
as minhas dúvidas adensavam-se…
“Estamos a 800 metros” sim eu
também tinha visto, mas não acreditava, e o inevitável aconteceu, uma estrada
bloqueada à nossa frente, uma ponte sobre a linha de comboio e, do outro lado,
o perdido Kokkedal Slot.
A única ponte no raio de visão do
tom tom dinamarquês de um iraniano integrado que não fazia a ideia (nem estava
preparado para reagir a imponderáveis geográficos)
Uma aventura no reino da
Dinamarca, quem diria, e o nosso motorista parecia uma barata tonta, as ruas
eram cada vez mais estreitas, pátios e parques de estacionamento, vivendas e
não havia mais pontes para lá da estrada de ferro, um mar de castanho no
aparelho que falava sozinho e, obviamente como máquina não pensante, não dava
soluções, porque não havia, a não ser que saísse do quadrado.
“Zoom Out”, ordenei subitamente,
achei que era a altura de mostrar a este cego crente na tecnologia do satélite,
que nada substitui o sentido prático de orientação de um puro lusitano!
E como por magia, o mar apareceu
e apontei-lhe o caminho
Alguns metros mais tarde, já de taxímetro
ligado “ Importas-te? Com estas voltas o meu patrão não vai aceitar, eu não te
quero prejudicar…”, a linha vermelha descobriu o novo caminho para o castelo
encantado.
Força Irão, deixa-te ir!
Cem coroas de gorjeta depois (“
Tens a certeza?” e eu gostei da sua capacidade de autocritica) o taxista de
Teerão agradeceu, comovido, de mãos unidas numa longa prece.
Um espírito livre, mas
desorientado, na branca e escura noite nórdica.
Mais de uma hora e setecentas
coroas depois!