O templo de Wiracocha marca a nossa entrada na terra dos incas.
Wiracocha é o deus dos deuses,
uma crença que apenas os barbudos mal cheirosos desprezaram.
A caminho de Cusco, a descer para
o vale sagrado, embalamos nas histórias do nosso guia, um inca cusquenho
convicto que não admitirá nunca que ponhamos em causa a superioridade de um
povo, um estado e um deus, cuja principal razão da sua existência era alimentar
o seu povo.
E conquistá-lo, diria eu!
Eles não queriam a roda, porque
não lhes servia…
Eles não tinham escrita, mas
tinham uma forma de comunicar, que os barbudos liquidaram.
Falou-nos e mostrou-nos as qolqas
(armazéns de mantimentos pertencentes ao estado inca), os templos, os círculos perfeitos
e a simetria das paredes inclinadas como as pernas dos humanos.
Mas os barbudos, tudo levaram, o
ouro e as estátuas.
A primeira das vitórias da
história do capitalismo selvagem sobre o socialismo humanista.
Nas ruínas gastas do deus maior,
vagueiam anciões que não parecem ter outro destino que se acomodarem nas
sombras de um império que não conheceram, mas de quem se sentem filhos, e
relembram-nos quão perecível é a natureza humana, tal como os impérios por eles
erigidos.
A imagem do casal de idosos sob a sombra de uma qualquer árvore nativa, de nome indecifrável, ele a nível superior sentado numa pedra milenar, ela subalternizada no chão poeirento de uma terra que já foi fértil, resgata-nos da nossa fascinação por uma civilização, que afinal ainda tem ruínas em pé, para uma existência de fé, pobreza e sofrimento.
Católicos, apostólicos e andinos.
Um pouco adiante, como se fosse
numa ordem cronológica pré definida (mais próximo da grande capital e o poder
dos colonizadores torna-se ostensivo) em Andahuaylillas, perto do nada e longe
das rotas andinas, descobrimos a capela sistina dos Andes, uma verdadeira
extravagância de ouro e preciosidades, frescos e pinturas, um verdadeiro teatro
de experimentação dos novos (e convertidos) artistas da escola de cusco, que
releva a pintura europeia do século XV, numa nova dimensão indígena.
Aqui, tal como no Colca, os
santos vestem luvas e cachecóis (porque a igreja é fria), e são humanos que
sentem, numa crença quase pagã em que colonizados e colonizadores se fundem em
vontades distintas, mas convergentes.
Afinal de contas o dia de S.João
coincide com a data do solstício de inverno – mágico para os incas e seus
rituais de adoração ao deus sol – a cruz de cristo, simboliza o cruzeiro do
sul, uma referência astronómica dos adoradores das estrelas e do céu.
Tudo tem uma explicação, tudo se
enquadra numa civilização que, pela ausência de registos, convive bem com a
lenda e com as interpretações arrojadas da sua história.
Hoje, católicos, apostólicos e
andinos!
Chegámos a Cusco ao fim da tarde mas vínhamos do vale e falhámos a entrada triunfal, qual Pizarro, sem vista aérea sobre os tesouros do Império.
Antes, submergimos numa qualquer
periferia anárquica e precária que nos desagua diretamente no centro histórico.
É sempre triste uma frustração à
chegada, para quem já se imaginava cronista do reino.
No restaurante Marcelo Batata,
jantamos o profundo Perú e, levantando a cabeça deparamos com uma frase
inscrita nas paredes deste espaço incomum:
“O nosso medo mais profundo é que
tenhamos um poder desmedido” – Nelson Mandela
Quem diria, em Cusco!
Depois de vários copos de vinho
peruano, acho que faz todo o sentido.
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