Linda é uma mulher de corpo ágil que levita sobre novas experiências sensoriais e que transporta um olhar que espelha a avidez, a inquietação e as visões alternativas do mundo exterior.
Cidade, metrópole e capital.
Linda é a mulher que veste roupas largas em cores
discretas, agita as mãos semicobertas por lãs de cores quentes,
mãos que argumentam,
olhos que se espantam,
mãos que seguram os copos de café quente,
boca que mordisca cookies de amêndoa,
dentes que se tornam estaladiços,
olhos que se escondem.
Linda, a mulher sofisticada não é um lugar-comum e
não habita num lugar só.
Corre ao longo do rio, caminha apressada nos
passeios, traça as pernas longas nas esplanadas de fim de estação, senta-se de
pernas cruzadas no chão de cimento das galerias e dos museus, integra-se nas
paisagens de verde e cinzento da cidade do norte.
Frequentemente emanando tranquilidade, erudições e
reflexão profunda.
Ou inquietação e cansaço.
Mesmo quando corre
Mesmo quando fala, muito raramente.
Hoje Linda é uma auréola iluminada pelos reflexos de
luz do grande ecrã de Luanda-Kinshasa, um documentário cuidadosamente decorado
para reproduzir o legendário estúdio de gravação de Nova Iorque e, no qual, uma
banda de musica de fusão improvisa novos sons de jazz, funk e afro beat,
simbolizando quiçá o renascimento das nações africanas.
Luanda – Kinshasa numa sala escura
Sentada no chão de cimento do 180 Strand, costas
direitas, cabeça levantada coberta de cabelos louros e compridos, vestida de
malhas e mãos finas que se recolhem no regaço e um olhar tão deslumbrado que
não se percebe, observando da escuridão, se a luz que a trespassa é o reflexo
do ecrã ou o projetor das imagens que compõem as personagens experimentais ao
longo da parede, que dão sentido à sua música e às suas expressões.
Os grandes óculos de aros de massa preta são apenas
um último detalhe que, no momento, me pareceu irrelevante.
Linda, a mulher sofisticada, reflete-se nos prédios
envidraçados da cidade financeira mas afirma-se distante de todos os lugares
comuns.
Como uma afirmação da grande metrópole, inspirada
numa redentora liberdade de gestos, de identidade, de movimentos e de fortuna.
Espreguiçada nas grandes almofadas de tecido cinzento,
que se estendem ao longo da grande vidraça, do cheiro a café quente, na loja da
cozinha ou no centro de recolhimento, descanso da escuridão das salas e da
intensidade das mensagens.
Linda, com vista para a cidade, de auscultadores
brancos que lhe envolvem o pescoço e lhe conferem uma pose de diva adormecida.
Para quem vive uma absoluta centralidade, Linda
interroga-se se algum dia a cidade lhe concederá aquele abraço a que se chama
família.
Para lá da modernidade, envolvida pelo mediatismo do
lugar e pelo frenesim das multidões que não param de partir e de chegar, ela já
não se imagina viver noutro lugar.
Hoje Linda é uma mulher madura, mãos descobertas e
veias que se agitam em cada tecla premida no seu smartphone e transporta uma
postura inquieta.
Não há serenidade no seu vulto cansado.
Cheira a café quente e ela debruça-se sobre a janela
do café de esquina, trocando acenos com a cidade que desfila com um frenesim de
dia de feira.
De café com leite na mão esquerda, a Linda madura tem
voz e zanga-se com impaciência com as hesitações que exalam do aparelho que
segura na sua mão direita.
De costas para a pequena realidade que se acomoda no
café da esquina, a melhor vista de um café de esquina na cidade, esconde o
rosto num corpo magro, mais magro que esguio, que se ajusta num fato de treino
cinzento.
Um corpo elástico num fato elástico.
Linda cruza as pernas e agita os cabelos louros e
compridos e define-se através de um sotaque nobre e pronunciado.
Por fim desiste do aparelho e recolhe-se no silêncio.
Num momento de distração revela o seu rosto.
Como se adivinhava pelas mãos, é um rosto gasto pelos
invernos da cidade.
Solitário é o adjetivo comum para Linda, nesta linha
contínua que liga gerações diferentes.
Na cidade do teatro e dos seus (dela) palcos do
sucesso e da realização, a madura Linda vive há quase trinta anos, tempo de
sobra para apagar os vestígios de qualquer outra existência, mas o seu olhar
furtivo revela-nos que este não é o seu lugar
Vinte e oito anos e dois casamentos fracassados, esta
é uma cidade que nunca lhe concedeu aquele abraço chamado família.
Tantos anos de palco e de histórias que se contam
todas as noites, décadas a fio.
E a madura Linda conta-nos a sua última história,
apenas com os olhos.
Mergulhando os lábios volumosos no café com leite, de
olhos pregados no vidro, a mulher madura, sofisticada, artista e contemporânea
liberta um desabafo, que apenas a rua decifra.
“Este não é o meu lugar”
Pergunto-lhe o nome e ela, surpreendida, responde:
“Linda”
Eu sorri.
Era óbvio.
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