“Barrancos? Vais para Barrancos? Mas a tourada já acabou!”
É por isso mesmo que eu vou para Barrancos.
Adoro os cheiros de final de festa.
Não me agrada a matança do touro.
Ou a matança do porco.
Tenho pavor do sangue vivo dos animais bravos.
Pavor, sim, pavor dos espíritos descontrolados que se
soltam com os gritos dos animais moribundos.
Prefiro o Alentejo das naturezas mortas
Vou para Barrancos por lá, já não se passa nada
Percebes?
Não, o corsário da Adega Velha, aquele que substituiu
a pala no olho esquerdo por dois olhinhos estremunhados e o chapéu de bicos por
uma careca lustrosa, já não me ouvia.
“Queres uma aguardente para o caminho?”
Não, porque ainda vou para Barrancos.
“Barrancos, tu vais para Barrancos? Olha que a
tourada já acabou!”
Os despojos da tourada de uma morte anunciada, ainda
revestiam o chão da praça minúscula com a poeira das planícies, a porta
principal da igreja matriz com trincheiras de madeira tosca e castanha das
árvores dos montes, as torres e os campanários com bancadas que ainda
empurravam os calores da emoção na direção da arena – ínfima arena – e o numero
treze da sorte que apontava, vermelho, para as janelas do clube recreativo e da
associação tauromáquica.
“Acesso reservado aos sócios em dia de tourada”
Nas ruas circundantes a vivalma já tinha expulsado os
forasteiros, cortejos de gente ainda um pouco enjoada das curvas da estrada de
Moura.
Apenas uma imensa natureza morta, vozes por detrás
das portadas escuras, um velho que fugia sobre muletas, antes que eu me
cruzasse na sua frente, um pequeno grupo de terrestres autóctones que discutiam
sobre nada numa língua fronteiriça, cheia de tiques de salero.
E olhavam para a nossa chegada pelo reflexo do olho
esquerdo.
E uma carrinha espanhola, a abarrotar de torrões de
alicante, doces de cor enjoativa e rebuçados de Badajoz que, aparentemente, se
tinha esquecido de partir.
No café de todos os recontros com o quotidiano
monótono, vendiam-se chás de composições bizarras e flores de cores garridas e
o empregado, sem sotaque fronteiriço e um bigode de fino recorte literário,
primeiro desconfiado, depois tímido e finalmente conhecedor, lá explicava a
diferença entre os chás de salão e os chás curativos, trocando uns pelos outros
sempre que pressentia mais emoção ou mais vontade de comprar, de forma a nunca
nos provocar arrependimento.
Adoro o cheiro de final de festa.
Afinal de contas o único animal vivo da vila era a
estátua preta do touro bravo que desafiava, de duas patas no ar, os forasteiros
que se aproximavam, chegados através da única rotunda de Barrancos.
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