Não fui eu! – Protestou o
cientista júnior, apontando para o desenho e para a poça que agora esborratara
a folha de papel, perante os múltiplos olhares reprovadores de quem havia decidido
que, aos nove anos, não havia lugar para estas ousadias
Mas era impossível não ser obra
do E., porque sapos não saltam de desenhos coloridos e a mancha de água não era
o charco do sapo mas sim da lágrima exasperada de um pintor fracassado e nem nas
histórias de encantar os desenhos ganham vida durante o exame da quarta classe.
Os outros putos da trupe
entreolhavam-se, divertidos pelo sapo gramofone que agora trepava paredes,
soltava ruídos guerreiros e depois olhava fixamente o horrorizado mestre-escola,
de cima da carteira do jovem estudante com vocação geopolítica, mas
desconsolados porque parecia comprometido o troféu de guerra do fantástico
assalto ao charco de ontem à noite.
Sim, algo devia ter corrido mal,
porque o Einstein assegurara que o batráquio não se escapuliria do bolso
direito do seu casaco de fazenda – que o assava em pleno Junho, mas a causa o
exigia – porque, na mesa de experiências da cabana do quintal tinha-lhe
administrado uma dose de clorofórmio que dava para adormecer toda a sapolândia,
bom, julgava ele!
E, perante o olhar interrogativo
do juiz imperfeito, encolheu os ombros sem resposta científica para este
acontecimento procurando, com cada um dos seus olhos saltitantes, controlar os
estragos, como iria ele recuperar o sapo, convencer o mestre-escola que era
apenas um acidente e que, por isso, não merecia ser condenado com um humilhante
chumbo e umas orelhas de burro no canto da sala, a não ser que fosse no mesmo
canto onde o grafonola se refugiasse.
Passarola voadora, o quarto membro
do gang dos putos assaltantes de charcos, era mais aéreo que todos os pássaros
da rua deles mas, num assomo de clarividência, tomou a decisão certa; entre o
troféu de guerra e o exame final, optou pelo último, pegou rapidamente no
anfíbio grafonola – que, fazendo jus ao seu cognome, não parava de emitir sons
roucos e histéricos – e lançou-o janela fora, para o campo de futebol empoeirado
que havia de petrificar o dito sapo, e dar-lhes tempo de recuperá-lo.
Tão rápido o fez que acalmou a
ira dos mestres, tirou o pio ao sapo, recompôs os amigos e contribuiu
decisivamente para salvar a carreira académica do bando dos quatro.
E enquanto recebiam as festas e
os diplomas da família, dos (agora) tiranos mestre-escola, a bênção do especial
convidado Padre Manuel, de tão pitosga nem se tinha apercebido da epopeia dos
sapos, E. recuperava na memória a epopeia da noite anterior (e o passarola o
sapo grafonola, discretamente repescado da imobilidade – ele, passarola, sabia
– da poeira do recreio e da sombra salvadora da figueira que, por ali, algum
dia alguém tinha plantado)
Tinha sido um momento épico,
cuidadosamente planeado sobre a supervisão do puto com vocação geopolítica – o
seu verdadeiro nome, salvo as conotações (aliás por todos eles desconhecidas),
Moshe Dayan, o estratega da guerra dos seis dias – que, nestes momentos de
glória, não dispensava a pala no olho, em recorte cuidadosamente elaborado do
resto de umas calças de ganga boca-de-sino, esfarrapadas após muitos anos de
combates de rua, emboscadas aos putos da rua de cima e expedições na poeirenta
estrada real, para os mais ignorantes a pala do pirata da rua de baixo.
Apesar de ser véspera do
famigerado exame, e o juiz imperfeito – assim apelidado pelos mais velhos da
rua, os experimentados liceais e malfeitores da rua de cima, porque o pai era
juiz e o puto tinha uma testa demasiado saliente e pronunciada – insistir que o
dia não era o melhor, os pais iriam questionar-se desta saída noturna e era
preciso rever as mastigadas matérias que tinham sido treinadas em múltiplos
ensaios parciais e gerais,
(toda a gente sabia, afinal de
contas viviam numa aldeia, quais eram os problemas, o tema da redação e do
desenho sobre os quais iriam prestar provas amanhã, ninguém duvidava que no
exame da quarta classe ninguém chumbava porque os burros, os lorpas que não
eram capazes de soletrar ou escrever duas palavras seguidas sem erros, esses,
não eram convidados a prestar provas)
Passarola, porque era alto como
uma avestruz, cabeça pequenina e passava a vida a sonhar, não se sabia bem com
o quê (havia quem jurasse que a alcunha tinha alguma coisa a ver com o
professor pardal) tinha sido o principal apoiante do Moshe, “Tem de ser hoje,
porque é lua nova” e o Einstein percebia bem as vantagens de atacarmos os
manhosos dos sapos numa noite de lua cheia, “É o efeito surpresa, entramos na
poça pelos montes Golan, dividimo-nos em dois grupos, o Einstein e o Passarola
pela direita com as lanternas prontas e nós pela esquerda com o camaroeiro em
riste”, eram as ordens do Moshe.
Sem comentários:
Enviar um comentário