- Ei, tu aí, não queres cortar o teu cabelo?
Eu apontei para o meu cabelo e para o do último
freguês que acabava de sair da cadeira para a rua e lancei-lhe um olhar
interrogativo, afinal de contas todos vestiam um penteado do género crista, que
não fazia o meu estilo, e ele assentiu com perspicácia, mas insistiu:
- Ei tu, eu posso fazer-te a barba – e com uma barba
de seis dias transformava-me num cliente pleno de potencial.
Mas eu abanei a cabeça, sorri e afastei-me dali cheio
de voluntarismo, não me estava a imaginar ter de negociar arduamente o preço de
uma barba persistente, em troca de uma navalha apontada ao pescoço, bem no
interior do souk, um beco com o máximo de dois metros de largura, coberto de
uma poeira que nem a noite dissipava, rodeado de dezenas de jovens de tez
escura, olhar desafiante e cabelos rapados dos lados e anormalmente crescidos
no centro.
Eram quase onze da noite e o cabeleireiro de homens
era o único espaço comercial aberto na derb Zaouia Lahdar, um gigantesco
corredor de terra batida que começava agora a abrandar a sua respiração, depois
da intensidade e da agitação do final de tarde, quando as sombras se tornavam
mais espessas, as mulheres saiam à rua para fazer compras e os veículos de duas
rodas furavam a multidão com persistência
Desde que abriram uma fábrica de motoretas chinesas
nos arredores da cidade…
A loja de reparação de bicicletas, que dividia o
espaço e a rua com uma padaria sempre com pão quente e exposto numa banca de
madeira no centímetro trinta de largura da derb, a loja de lãs e sedas, a
tinturaria, lavandaria e passagem a ferro que ocupava o pátio de um enorme Riad,
e as velhas encolhidas e completamente cobertas e agachadas junto às ombreiras
das portas de comércio e à mercê das moedas que, esporadicamente, caiam das
mãos dos religiosos cobertos de vestes brancas, homens de barba afiada e de
cabeça coberta, todos eles já se tinham recolhido porque, a partir das dez, a Medina
volta-se para si própria, uns minutos antes do ultimo chamamento do dia para a
oração.
Só o cabeleireiro de homens permanecia no auge, com
um som estridente e metálico de música moderna escorrendo do seu interior, e
dezenas de olhos sentados nas cadeiras de espera que entupiam a caverna de uma única
porta, uma única cadeira de barbeiro que partilhava a ombreira com o excesso de
lotação, que não deixava de incentivar a veia artística do barbeiro, o mesmo
que, não contente com esta inesgotável fonte de freguesia, continuava a
chamar-me, aprontava-me eu para dobrar a esquina mais próxima, aí a uns
cinquenta metros do local desta sangria capilar.
Já passava das dez e meia e já se ouviam os
chamamentos oriundos dos minaretes de todas as mesquitas da cidade antiga, e os
homens de branco e de cabeça coberta já se tinham retirado para as preces a Alá.
O som inimitável das vozes que, ao desafio, chamavam
os fiéis e (como que) avisavam os outros, da voz grossa e de acento forte do barbeiro,
das motoretas que aceleravam na noite, cujas sombras precediam o ruido
cavernoso, e das luzes que emanavam som dos telemóveis dos putos e dos
motociclistas, perseguiam o nosso caminho entre sombras furtivas e uma cidade
que dormita apenas, aguardando a primeira oração das cinco e meia e o nascer do
sol.
Sem dúvidas de que o ultimo túnel da derb Assuel era
a passagem certa do mundo dos homens para a paz celestial, avançámos decididamente
para campainha de sonoridades envolventes, para o cheiro a incenso e para os sons
metálicos das mil e uma noites, onde àquela hora, só o gato nos esperava.
Somali, tem quinze anos e é o rei do Riad. Um bom
rei, afinal de contas, só quer companhia e muitas festas no focinho, não pede
comida nem procura vender tapetes.
Um verdadeiro Rei, nesta visão romântica de um oriente
que já não existe.
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