O velho permanecia imóvel, num primeiro olhar teria
jurado que era um imóvel do tipo felino que guardava os tesouros mais preciosos
da dinastia dos Saadian.
Árabes e terra de berberes.
Num segundo olhar, o imóvel era de indolência, afinal
de contas quem se atreveria percorrer as centenas de metros de um Sol que
cuspia fogo na vertical, de enfado quando alguém se atrevia, afinal de contas
eram apenas destroços impossíveis de contextualizar.
Acima de tudo era um imóvel de desconforto provocado
pelo seu volume desproporcional ao despojo deste lugar, da sua cadeira de
funcionário da inutilidade do seu cargo que se resumia a repetir o óbvio para
todos os escassos visitantes que se aventuravam neste lugar, no photo, tão
inútil o aviso quanto o esboço de preocupação que, na maioria dos casos, se
resumia a um trejeito.
El Badi foi o momento supremo do mais inspirador
desta dinastia árabe em terras berberes.
Al Mansour, um monarca que quase pareceu capaz de
fazer renascer os impérios berberes.
Construído com o sangue e os despojos de Alcácer-Quibir
este palácio transformou as mil e uma noites numa lenda terrena.
Impossível de imaginar o luxo dos mármores, os
jardins luxuriantes, a água que corria do Atlas, a não ser através de uma
reconstituição tridimensional, que a falta de escuridão da sala de projeção não
deixava brilhar.
Desmontado como um automóvel usado, à procura das
melhores peças sobresselentes pelas duas gerações seguintes que redistribuíram
os luxos por inúmeros palácios e santuários, longe de Marraquexe, nas novas
capitais imperiais do Norte.
Em apenas duas gerações e mais quatrocentos anos de
esquecimento da grande cidade berbere.
O velho continuava a respirar sincopadamente,
incomodado pela minha presença prolongada no seu raio de visão, albergava-me do
Sol e esperava pelas pequenas, não te imaginava descendente desta ruína em
avançado estado de decomposição.
Pensava apenas no que teria levado, uma civilização
tão antiga e preponderante, a desventrar de forma tão metódica as suas ricas
heranças.
Pensei em perguntar ao velho, mas ele já não estava
em condições de me ouvir, agora envolto num imenso e silencioso espasmo quando
uma jovem de tez árabe fez uma entrada triunfal neste desolado núcleo museológico,
vestida com uma enormes floridas e transparentes calças de Ali-baba que não
escondiam uma ousada lingerie de fio dental e duas nádegas salientes e bamboleantes.
Pensei em voz alta que as dinastias árabes do
Noroeste de África conformaram-se com a expansão para Sul e lançaram, do
ancoradouro Sul do mar mediterrânico, a corda ao mar, o laço histórico que, num
dado momento da História, parecia destinado a unir as civilizações em torno da
Antiguidade Clássica e de um Deus comum.
Mas o velho não me ouviu, abanava a cabeça, vidrado
de uma impotência quase raivosa, até porque ele era velho e estava gordo, e ela
não.
À saída do El Badi, de volta ao presente trepidante,
levantei os olhos com um ar interrogativo para uma loja de esquina, forrada de
especiarias e o jovem bem vestido que a guardava (a loja ou a esquina, fiquei
por saber) estende o braço esquerdo para as especiarias e o direito para as
ruínas, El Badi c’est par la, sim, eu não sei é porque está tão decrépito
(pensei apenas), mas o jovem adivinhou,
“Je ne suis pas un guide, j’ai mon propre magasin”
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