A estrada para o Sul é imensa, tanto quanto a
paisagem de uma planície inatingível.
Caminhamos pela Estremadura abaixo e os sinais dos
humanos são permanentes, apesar de predominar o deserto.
Não se vislumbra vivalma nos campos castanhos, esporadicamente
verdes e sempre, quase sempre, de um dourado que sobrevive ao inverno e se
confunde com o braseiro que se antecipa no verão.
Mas a paisagem nunca deixa de ter o toque do homem,
de um personagem escondido que troca a mecanização da agricultura pensada para
a indústria por uma sesta preventiva nas tardes de Sábado.
Eles não se vêm, mas sente-se que estão lá, como a
enganadora sugestão de que um xerez antes de almoço não provoca a inibição nem
sobressaltos na estrada, porque ao Sábado não há polícia que trabalhe.
Mais um engano, a estremadura profunda, a caminho de Córdova,
é pasto de autoridades fardadas que se infiltram na numa fila contínua de
automóveis esporádicos.
A Espanha profunda é uma arte de magia negra,
anunciada pelos touros miúra que fazem as vezes do espantalho rural e que
descansam os locais da intrusão alheia, enquanto estes vivem nas ruas das
cidades, das aldeias e dos lugarejos, como se as suas próprias casas fossem
prisões medievais de alta segurança.
Apenas as famílias ciganas vivem numa espécie de
campo que antecede as cidades, mas nem estes se aventuram demasiado pela
planície adentro, nas mulas velhas e nas tendas encardidas, porque, sabe-se lá
porquê, as terras são dos homens mas não são para os homens.
Exatamente ao quilómetro noventa e oito – a metade do
caminho é a metade e a aritmética é uma métrica perfeita para a constante da vida tão concreta e definida como outra
coisa qualquer – saímos do filme que corre em contramão para trás do nosso
caminho, um quadro de cores esbatidas e quentes, rodeadas de molduras de
um branco espesso pintado num céu de meia estação e tempestades esporádicas e
desligámos por momentos o motor das sensações de embalo.
Do outro lado da estrada, espreita o miúra em pose de
letargia, própria de um bicho solitário de cartão, incapaz de ser o
protagonista das estradas do Sul.
Na berma do caminho, longe do alcance da fera,
descansava uma fonte andaluza que libertava água como quem sua, em pingos
grossos mas aleatórios, tão descentrada do petulante jardim sem folhas, que
apenas podia ter sido construída sem aritmética nem fita métrica.
Por detrás da fonte sem aspirações, residia um hostal
de portadas encerradas, numa lembrança furtiva de um qualquer cenário construído
nas planícies da Andaluzia, para produzir filmes de cowboys.
De mãos dadas com o fantasma, a bodega fervilhava de
movimento, como se toda a amplitude da paisagem andaluza tivesse sido, através
de um grande funil chamado civilização, despejada naquela gigantesca mercearia
de presuntos pendurados, pernis de ossos eloquentes espalhados pelos pratos,
recuerdos de gosto sensível e caramelos descendentes que emolduravam uma
comunidade de figurantes rurais
Cá fora, sentadas na esplanada do país da planície,
elas permaneciam incólumes às distrações diversas e, tal como todas as
protagonistas dos filmes negros das décadas passadas do século vinte, fumavam,
maços de tabaco vermelho espalhados pela mesa, que apelava à hora da coca-cola,
unhas de um vermelho ofuscante, cabelos muito pretos que acariciavam os lábios
vermelhos e as mãos compridas, vestidas de preto do pescoço às ancas, da
cintura ao tornozelo, estes exemplares superiores de uma representação viva da
teoria da evolução.
(Instantânea como a abertura de uma porta)
Vermelho e preto, não estivéssemos nós na terra dos
toureiros
Perante um atrevimento tímido de um forasteiro que
vive do ar do mar, esbofetearam com os olhos um trejeito desdenhoso e
levantaram-se com uma languidez predestinada de quem nasce composta.
As duas.
As pernas alcançavam a berma da estrada e as saias
tão largas quanto curtas não permitiam destrinçar os diversos tons de preto,
apenas as formas.
Viraram as costas e os seus blusões negros identificavam-nas
em letras brancas.
Polícia.
E até a empenada e entupida fonte se centrou no
jardim das folhas mortas.
Agora entendemos porque a fera miúra se mantinha à
distância e temerosa. Como aliás toda uma multidão que se havia refugiado
dentro da bodega.
Como se as protagonistas tivessem secado o local.
E nós não duvidámos um bocadinho que fossem agentes
de uma autoridade suprema.
Até a criança nos lembrar que hoje era Sábado de
carnaval.
Mas nunca se sabe.
Afinal de contas a Espanha profunda é pura arte de
magia negra.
Heranças.
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