Alphabet City é um bairro dentro de um outro bairro, East
Village.
O nome desperta lembranças das utopias dos heróis da
banda desenhada, cidades sem passado nem futuro que se constroem em linhas
direitas, medidas austeras e uma comunidade de residentes que se povoa de forma
simplista e desenhada entre vilões e heróis.
Mas a realidade é tão apenas prosaica como a
descrição híper realista de um conjunto de quarteirões que se localizam entre a
avenida A e a D e as ruas um a catorze.
Provavelmente porque, naquele canto da ilha, a leste
da primeira avenida, ninguém quis numerar as ruas com números negativos
Mas Alphabet City é exatamente o oposto das
lembranças animadas que o nome desperta.
É um bairro de histórias e de habitantes locais.
A história do Chico, que cresceu na avenida C,
frequentou as escola pública e transformou-se num muralista contemporâneo,
pintor de spray e de mensagens de esperança para os residentes do Harlem hispânico,
e homenagens a figuras inspiradoras, histórias de tragédias pessoais e
celebrações da comunidade.
Na ausência de mecenas abastados, trabalhava por
encomenda para os proprietários dos bares e das mercearias, como uma espécie de
substituto para os inexistentes cartazes e neons.
Eu encontrei pelo menos um mural assinado pelo Chico,
tendo garantido a todos os incrédulos que estava perante uma obra de arte, um
artista em exposição em galerias da Europa e do Jjapão.
Mas este é definitivamente um bairro de histórias e
habitantes locais e, por isso, ninguém o visita
Exceto as celebridades que espreitam nas paredes, em
dimensões variáveis, na devida proporção
da sua admiração pelos seus atos de fé e coragem.
Exceto os seres que a tornaram famosa nas décadas de
oitenta e noventa, os últimos anarquistas da cidade, antes da cruzada de
pacificação e que hoje vagueiam entre os bancos de jardim da Tompkins Square, entorpecidos
por anos de luta anarquista, muito fumo e alguns ácidos.
E uma negociação conveniente com o pragmático Xerife Giulliani,
que atribuiu aos ocupas dos anos noventa, espaços para viver, jardins para
cultivar a arte de rua e garantias de que nem todas as esquinas jardim seriam
transformadas em prédios, mantendo-se preservadas como as hortas da comunidade artística
e os locais de culto da partilha de experiências e do saber fazer.
Mas, e apesar do enorme esforço que a cidade tem
feito para transportar todos os seus habitantes para os círculos, para as
redes, para os comportamentos e para o modo de comunicar do mundo global,
muitas vezes aproximando a cultura a movimentos de vanguarda anarquista quase antissocial,
ou promovendo a arte marginal nos círculos das galerias, como uma moda elitista
e social, sim, apesar deste lato senso que tende a extinguir os eremitas
sociais, basta atravessar o Tompkins Park às onze horas da manhã de um dia de
verão intenso, para entender que, por ali, vão sobrando os restos de uma
envelhecida katmandu.
E os trinta e nove jardins comunitários que persistem
no bairro não deixam de evocar, aqui e ali, tons que variam entre o moderado e
o persistente psicadélico, e estão povoados de seres que alternam entre a
meditação e a alucinação, ou outros apenas que perseguem com olhares
persistentes, as mulheres que os atravessam.
Habituados a uma boémia intelectual e revolucionária,
hoje socialmente aceite por uma West Village que transpira jazz, joga xadrez em
Washington Square ou declama poesia nos cafés do bairro, sentimo-nos a trespassar
uma zona quase interdita.
Sem um critério de pesquisa ordenado, deambulávamos por
ruas que ainda penduravam lençóis manuscritos em prédios decadentes, por
bandeiras de Cuba que clamavam por revolução, por jardins fechados com cadeados
ferrugentos “esse jardim está sempre fechado, nunca ninguém o abre” – exclamava
um velho sem dentes de cabelos brancos, compridos e desgrenhados mas com uma
conversa fluente, que insistia “ deve haver aí tesouro escondido” e percebemos
assim que, mesmo em ambientes comunitários, existem os donos das chaves, e ele,
que vagueava entre a avenida A e a 1ª avenida, rondando uma lavandaria
comunitária e uma feira de velharias, um centro paroquial e uma loja de take
away.
E o velho combatente, um sobrevivente dos meses de
ocupação de prédios desfeitos sem luz ou água, e das batalhas de jatos de água
com a polícia de NY insistia que ali, também viviam histórias, concedendo-nos
direitos de fotografia e reportagem, tal era a saudade dos tempos em que este
era um bairro tão antissocial, que era notícia.
Nada que fosse demasiado importante para a menina do
café com gelo que jurava que os seus amuletos de sorte eram as notas de dois
dólares e as moedas de um dólar.
“São raras”
East Village é um bairro de histórias que não acabam
e quando, na Houston Street nos cruzámos com a Kats Delicatsen, logo me
recordei das minhas anotações no livrinho de recordações e daquela cena quase
mítica em que Meg Ryan desafiava Billy Cristal “you are a kind of man that
frightens women”, ou algo parecido, e lhe demonstrava que todas as mulheres
sabiam fingir um orgasmo.
Perante a incredulidade de Billy e o espanto do
restaurante cheio de figurantes, a menina do “When Harry met Sally” simulou um
muito ruidoso e energético orgasmo que transformou este estabelecimento de fast
food na maior celebridade do bairro de East Village.
Em mil novecentos e oitenta e nove caiu o muro de
Berlim e estávamos no auge do movimento dos ocupas, alguns quarteirões acima,
no bairro do alfabeto.
Porque é um bairro de histórias e de pessoas do
bairro, só o visita quem tem curiosidade ou recordações.
Ou ambas
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