A Bowery não é uma grande rua.
Não é alta nem é baixa, apenas corpulenta e
descuidada quanto seria afinal de esperar de uma rua que é uma gigantesca linha
de fronteiras confusas e identidades sobrepostas.
A sul a frenética e incompreensível terra da China.
A oeste o berço da emigração italiana e irlandesa,
agora uma pequena Itália, invadida, quarteirão a quarteirão pela corrente
chinesa
A leste vivem os últimos marginais da cidade, que
disputam as poucas árvores com uma silenciosa e tímida comunidade japonesa e um
jardim onde todas as manhãs anciões chineses (eles outra vez) passeiam pássaros
Hua Mei em gaiolas de um orgulho estridente, não fossem estes, pássaros
cantadores.
A norte e a leste, a ponte de Williamsburgo, que foi
a rota de emigração dos judeus para Brooklyn e ainda a norte a rua de Houston,
onde ainda persistem alguns dos bares clandestinos que proliferaram na baixa
Manhattan, durante a lei seca.
E há quem garanta que, nos bairros circundantes,
viveram os alemães que cruzavam o bairro da carne e serviam os melhores bifes
da média maçã. Antes de terem emigrado para Brooklyn à frente dos judeus e
saltado para Queens, de braço dado com os irlandeses, outra vez intimidados pela
ortodoxia dos judeus da cidade.
De piso esburacado, placas centrais pouco cuidadas e
de uma largura desproporcional à altura dos prédios antigos, gastos e atolados
de reclamos sem luz e carateres verticais, a Bowery é uma velha feia e com mau
feitio.
Não é bela e snob como o Soho, nem suja e
vanguardista com a East Village, nem intelectual como a Greenwich Village.
Pronto.
Dá mesmo a impressão que alguém se esqueceu dela.
Mesmo com a chegada do vanguardista New Museum aos
235.
É mesmo preciso ser resistente para suportar a
chegada ao 235.
Como alguém marcava na rua, “ainda bem que sou ateu”
Mas o Bowery deve ter algum encanto.
O Instituto de Fotografia Contemporânea instalou-se a
vinte e seis de Junho no 250.
Número par, azar dos Távora, é no outro lado da rua,
e parecia um canguru a fugir das crateras do meio da rua, infeliz por não haver
passadeiras e os semáforos ameaçarem desligar-se a cada passo na direção desta
largura oceânica.
Pois, o ICP, é como se chama, despediu-se da mediática
e luminosa sexta avenida e desterrou-se junto à muralha da China
E logo com uma exposição que se mantém aberta até a
noite cair, chamada de Publico, Privado e Secreto.
Inquietante.
“ A exposição mostra como a contemporânea identidade
de cada um é atualmente moldada de forma indelével pela visibilidade pública e
pela imagem que nós próprios construímos para disseminação.”
Voyeurismo e vigilância.
Um tipo que se depila em frente a uma webcam, uma
blogger que marca encontros fortuitos na Houston Street e os filma com uma
micro camara, peepshows virtuais e filmes construídos a partir de camaras de
vigilância.
E a cave, ampla e luminosa cave da Bowery 250, a
partir das seis da tarde parecia uma antecâmara dos mais secretos e perversos
jogos das pessoas comuns.
E entre os corredores sentia-se uma tensão que cheirava
a suor.
Assustadora a forma como os (inúmeros) visitantes
deste local, oscilavam entre uma profunda intelectualidade de vanguarda e doentia
personalidade psicopática.
Bipolaridade ou impressão minha.
Felizmente havia camaras de vigilância em todos os
cantos.
Regressados à superfície, a Bowery já parecia mais
normal e, porque estávamos exaustos de atravessar tantas fronteiras e descer a
tantos buracos, levantámos o braço e estacou, de súbito um táxi amarelo, para
variar uma Nissan, desta vez com trejeitos de veículo comercial.
Abrimos a porta e o negro gigante assomou no lugar do
condutor, sorriu com uns grandes dentes brancos e gritou com um indisfarçável
sotaque francês:
Cab is free.
Mais uma fronteira. Bem-vindo a Port-au-Prince!
Ao nosso lado direito, abriram-se as faixas de aceleração
para a ponte de Williamsburg e à nossa frente, enfiado numa cratera gigante
jazia um táxi amarelo para gáudio dos transeuntes e ira do nosso haitiano, “como
é possível que um taxista caia num buraco, se fossem os outros agora um taxista
tem de conhecer os buracos todos”
Ele tinha razão e a marca do táxi afundado era um
Ford.
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