“ Apenas um por cento das pessoas pensa no
significado da vida!”
Onze da noite em Meatpacking District.
Muitos anos depois de um tempo em que o bairro “actually
packed meat”.
Era Sábado à noite na cidade trendy, nas ruas escuras,
propriedade dos antigos matadouros que alimentavam a cidade voraz, de uma linha
de comboio que desventrava quase duas milhas de cidade, entre armazéns com
odores fortes e velhos prédios cobertos de fuligem.
O mesmo espaço que se transforma em todos os
amanheceres, nas margens do rio Hudson, em espelhos de vidro que se anunciam,
neste novo oeste de territórios abandonados.
Mas as luzes ainda rareiam neste estaleiro que se procura
reinventar, entre a alta e a baixa, entre a oitava e a décima primeira, onde
outrora habitavam as entranhas gordurosas da metrópole.
Como que renegando a genética luminosa da cidade, na
nova centralidade a multidão move-se nas sombras, hoje à noite de reflexos
multiplicados pela chuva que voltou, alimenta-se de espaços fechados de tijolo
vermelho, transformados em cavernas de Ali Baba, mal se transpõem os portões
metálicos tão rudes como a irregular calçada que serpenteia o burgo.
Enquanto os últimos artistas de rua ainda resistem
nos derradeiros muros em processo de reconversão, antes de se mudarem para East
Village, depois Brooklyn e Queens e, quem sabe, mais tarde para o Bronx.
Ou se mudam para dentro das renascentes galerias
envidraçadas de arte de vanguarda.
71º F era a incompreensível temperatura húmida e
abafada que se anunciava na nona avenida.
Entre o formigueiro de vultos e automóveis que
desciam a nona, acendeu-se uma pequena luz branca que serpenteava a rua em
obras.
Free.
Free
is the cab.
Mão ao alto antes que chova, e não há maior prazer
que chamar um táxi com uma mão ao alto.
Primeiro, porque também nós podemos ser estrelas de
cinema.
Vimos isto tantas vezes nos filmes.
Depois, porque em NY, isto funciona mesmo, basta
olhar para eles, simular que levantamos um dedo e temos um amarelo só para nós.
Já não é um amarelo como o dos filmes, hoje o império
dos sentidos orientais invadiu as ruas da maçã, e um ford já não é tão fácil de
agarrar com uma só mão.
Um vulto de barba branca (e no início jurei que tinha
turbante) chamou-nos para dentro do Nissan e, naquele momento acreditámos que
iriamos escapar à chuva e à mole humana que nos empurrava para a noite.
“Apenas um por cento das pessoas pensa no significado
da vida” – foi esta a primeira frase que saiu pela porta aberta entre nós e o
homem de barba branca, que não tinha turbante mas que vestia uma pele escura,
encardida da vida e dos fumos da cidade.
Sim, ele sabia muito bem onde era a quarenta e anuía sem
desviar a cabeça da calçada, nem o ouvido do som que ecoava no táxi.
Uma voz límpida e com um sotaque indesmentível saía
dos altifalantes do carro amarelo, e falava aos fiéis, como se fosse uma
audiência em direto.
Entre a rua 14 e a rua 26, cheguei a jurar que era um
som de mesquita e, dentro do carro, não sobrevivia um som que retirasse a
limpidez àquela voz que falava uma linguagem simples, quase pueril, para uma
plateia de silêncio, dentro do carro e para lá do fio (seria rádio, alguém
jurava que era um ipod)
E o homem de barba branca e pele escura não alterava
aquela expressão de meditação interior e absoluta concentração exterior no
trânsito caótico que se intrometia entre nós e a décima avenida.
Nem mesmo quando se atravessavam nos para-choques
dianteiros as adolescentes de saias muito curtas e de decotes profundos,
saltando como gazelas entre o trânsito e os portões metálicos dos grandes
tesouros de Ali Baba.
A partir da rua vinte e seis, a voz falava de Mumbai
e explicava que a aparência era o que menos caraterizava o espirito dos homens
e a minha crença mudou.
Provavelmente era um Homem Santo Hindu, um sacerdote
Jainista ou um monge Budista.
Porque no fundo o que a voz nos explicava é que a
essência do ser, e do nosso papel no mundo está para além da ostentação de símbolos
de poder e riqueza.
Entre o sotaque difícil e as palavras simples,
entendi as siglas BMW.
Conhecendo nós Mumbai, então percebíamos
De palavras simples, voz solene e mensagem única, só
concluímos que era o momento espiritual do submarino amarelo na noite chuvosa
da grande cidade.
Um silêncio que durou vinte e seis quarteirões, em
que fomos transportados para uma outra dimensão.
À saída, e num inglês absolutamente perfeito, o homem
de barba branca e pele escura, anunciou a conta, desejou-nos uma noite feliz e
agradeceu com uma simpatia desprendida, a gorjeta de três dólares.
Bem vistas as contas, bastante mais que os vinte por
cento regulamentares.
Bem pouco para tamanho banho de universalidade!
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