O Adamastor, canto V, não é um monstro indomável.
Na pedra de Santa Catarina, o Mirador de Lisboa, há
uma espécie de conto de fadas que abraça a estátua de pedra escura e formas
indistintas, com uma absoluta ausência de temor.
Talvez porque neste Dezembro de amenas paisagens, o
rio não é o mar, a autoridade fuma numa farda cinzenta e os outros fumam
cheiros adocicados, arrastam os cabelos enrolados pelo chão de pedra polida, a
música tropical exala sons de um exótico ardente e de uma paixão que aspira os
inofensivos pecados.
Por isso o Adamastor não tuge, tão desconsolado pela
sua incapacidade de amedrontar.
E a fauna precede a flora, o poder da flor e outras
fábulas que não se contam às crianças.
Mas enquanto a luz se torna oblíqua e céu alaranjado,
as figuras renascem em sombras, o casal passeia uma cadela de coroa de flores
ao pescoço e longas tranças, armadas como um balão de São João, o curvado
ciclista desagua do nada junto à árvore que se vangloria de ser mais imponente
e de maior utilidade que o pobre Adamastor.
Ninguém se encosta, não é medo é apenas desprezo.
Devagar, devagarinho, aproxima-se pelo fundo da
praça, uma jovem de caminhar ágil, uma gazela que faz questão de destoar da
fauna arrastada e encardida tanto quanto as sombras nos permitem cheirar, sim,
uma elegante jovem de roupas limpas e cores com personalidade, sim é ágil mas
parece pairar em camara lenta entre uma massa de gente de roupas escuras e
olhares sonhadores, ela aproxima-se vinda do fundo da praça, Catarina é o nome
da praça, o nome dela não sabemos porque ela não fala, não diz, apenas levanta
ligeiramente a cabeça à nossa passagem, uma forma de evidenciar a sua diferença,
contorna os troncos das árvores centenárias, desce as escadas de pedra em bicos
de pés, bailarina com certeza afirmam os olhos da gente que forra a encosta de
pequenos faróis que piscam com a sua passagem, abre alas com um foco de luz que
brilha nas suas pernas de brilhantes e ganga envelhecida, intromete-se entre a
paisagem, o público e os músicos, contorna a multidão como se tratasse de um
filme que tivesse parado e todos os figurantes se petrificassem de modo
voluntário e, finalmente, chegou-se aos pés da grande estátua.
Acariciou as disformidades do grande Adamastor,
estendeu-se diante a grande sombra que vigia o rio, esboçou um passo de dança –
era definitivamente uma bailarina – seduziu o monstro com uma larga vénia que
largou um eco na praça, construiu um pequeno altar de paus de gelado e
lançou-lhe o fogo, transformando o monstro num objeto de culto, que esboçava um
sorriso, a partir da luz da fogueira.
Aninhou-se no seu colo e fumou um longo archote que
largava fumo, chispas e pedaços de erva.
A restante malta logo se desinteressou da gazela
vudu, esperavam rituais satânicos e afinal de contas a ágil princesa das trevas
apenas procurava conforto na experiência do velho.
Todas as tardes, antes do Sol dormir.