Na agitada esquina do Largo da
Graça, o quiosque do homem mais importante do bairro está apinhado de gente
menos jovem.
Na parede do prédio dos vizinhos,
o dono da rua espalhou as capas de jornal e reuniu as forças vivas do bairro
que certamente discutiam o tudo e o nada, para além naturalmente de futebol.
E nem a fúria eleitoralista da
autarquia que arredonda passeios, transforma calçadas e entope parques de
estacionamento, reduz o calor daquele momento, torna-o apenas um pouco mais
denso e dramático, envolto naquela rede de obras em curso, com término previsto
lá para o Outono.
Serpenteando o castelo a olhar o
rio, saem vozes de dentro das janelas abertas que evaporam um cheiro a couves
cozidas e a mofo da idade, a mulher de preto que assoma à porta da ruela e,
perante a incapacidade de estender o pau da roupa, roga pragas a quem quiser
ouvir, escandalizando os forasteiros com um “ nem com esta idade consigo enfiar
o pau”, e a velha que grita do alto do segundo andar para a rua, reclamando não
se entende de todo o quê, num idioma que o seu vizinho asiático parece entender
com a única mão que tem liberta, enquanto rola calçada abaixo puxado por uma
bilha de gás propano.
Na mouraria, onde já não há
locais nem estrangeiros, tão intensa é a multiculturalidade dos seus habitantes.
Sentada nas escadas da igreja que
espreita o rio, uma mulher de meia-idade, vestida com um longo xaile preto e
maquilhada com cores pouco discretas desfere ataques certeiros à honra de uma
terceira entidade, alguém que a sua ouvinte bem conhece, mas que não está lá
para se defender.
Nem ela nem a ouvinte porque
naquele Mirador há apenas uma mulher de peito largo e voz de fadista que repete
a sentença, tantas vezes quanto o sinal de telemóvel falha e os cacilheiros se
aproximam do cais do tabaco
A voz remete-nos para as casas de
fado que povoam o quarteirão, mas a saudade não lhe turva as intenções.
Nem o silêncio recolhido do
terreiro da feira da ladra em manhã de descanso.
Nem as sombras que se enrolam nos
lençóis pendurados, cada vez mais furtivas, cada vez mais penosas, dos últimos
bastiões da ordem antiga, das portas escancaradas dos alguidares que se despejam
nas esquinas ingremes (porque as esquinas aumentam a probabilidade de dispersão
dos incómodos) e já não é vulgar que as sombras te olhem na cara e retribuam um
sorriso, sobretudo por cansaço.
Nem o Pai Natal pendurado na
janela aberta e sonora das vozes do interior, que tanto se esforça mas que
jamais transporá o varandim rendilhado que reflete o azul do céu e do rio.
Nem o fim da linha, onde para o
28, e para onde se parece ter mudado o mundo inteiro, e os pregões ganham uma
música de tons exóticos.
Os tuk-tuk continuam às voltas,
mas duvido que alguém lhes explique estas cambiantes.
Um pouco mais acima, um nobre
cavaleiro, ao perceber um entreabrir de uma porta no Castelo dos Mouros,
atacou-a sozinho e atravessou o seu corpo no seu vão, sacrificando a sua
própria vida em prol da conquista das forças cristãs.
Mas o guia do tuk-tuk ecológico
que miraculosamente não atropelara um molho de espanhóis, pelo silêncio,
apressou-se a descansar os forasteiros em suspense:
- Não, não foi ontem. Foi em
1147!
E eles soltaram uma gargalhada de
alívio.
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