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domingo, 7 de julho de 2024

O último comboio para o Estoril

 

Há lugares assim. Quando o mundo se desfaz em insanidade, uma elite de gente que antecipa o Apocalipse, refugia-se a uma distância de segurança, e a periferia mais ostracizada ganha uma nova luz, como se o miúdo gordo e caixa de óculos, um fantasma que percorria, solitário, os corredores da escola, renascesse como o mago da bola, uma nova moda em que todos ansiassem ser olhos míopes e corpo de panda. 
Em tempos de precipício, as pessoas encontram conforto na imperfeição e nas dificuldades de socialização, como se fosse uma proteção contra a fúria dos infames.
Na casa Sommer, em Cascais, o projeto de autor chama-se blackout, mas a atmosfera de filme negro que cobre o portfólio de quarenta e cinco fotografias que, a partir do presente, retratam o início dos anos quarenta no novo eixo de centralidade e de paz da Europa de uma escuridão esculpida a ferro e fogo, recorda-nos sobretudo a bipolaridade que corrói a mente dos refugiados, entre a euforia de poderem respirar a tranquilidade e a culpa de a respirarem enquanto os outros aniquilam o que ainda sobrou das suas memórias. 
Uma dicotomia construída de glamour e de conspirações sonhadas, por aqueles que sabem, mas ainda ousam duvidar, que vão ser párias para todo o seu futuro. 
Lisboa, Estoril algures depois de Junho de 1940 e o preto e branco de alto contraste das fotografias do autor e das provas documentais que garantem que aqui se viveu a antecâmara do fim do mundo, e uma multidão de seres de hábitos e roupas estranhas mudaram a paisagem mental dos nossos atordoados antepassados. 
Como se nascesse na pradaria, e sem tempo de construção, uma metrópole alienígena. 
Nas vitrines da exposição do Alexandre, uma capa do Diário de Lisboa de um qualquer dia de verão de 1943, noticiava as manobras de simulação dos bombardeamentos em Lisboa que nunca vieram, o mesmo jornal que citava fontes do Terceiro Reich para desvalorizar os resultados da ofensiva soviética e fontes de Londres para noticiar as missões aéreas sobre Berlim. 
De repente, o regime que não gosta de se questionar, sente-se assolado pelas subtilezas da neutralidade. 
A história do autor conta outras estórias, é humana a necessidade de construir enredos que facilitem a compreensão humana do colapso de valores que representou a última guerra mundial, como a paranoia dos ataques aéreos surpresa e a do amor impossível entre uma refugiada alemã e um espião inglês. 
Dentro da casa Soller, os visitantes são espaçados, mas lá fora, e apesar do sol ser um sorriso sobre o azul, o vento não segura as copas das árvores, nem as bandeiras do porto, nem as saias das mulheres de vestidos brancos e óculos escuros e, de repente, há regressos do passado que moldam o presente, e as ruas do presente da linha do Estoril estão lotadas dos novos expatriados, que fazem compras no mercado saloio e inflacionam os refúgios dos locais.
E não há ainda sinais de mundo em carne viva. 
As saias das mulheres de vestido branco e de óculos escuros são, claro, apenas uma metáfora à nostalgia dos anos quarenta, uma tentativa (aliás indecente) de procurar semelhanças nos tempos de hoje, uma insinuação de que poderemos estar, mais uma vez, à beira do abismo, apenas alegorias usadas para manter o interesse na prosa, porque hoje a diversidade do mundo que se instala por cá, já não causa temor nem espanto, e já sabemos todos que não é possível prever o futuro só com base no conhecimento passado. 


E, hoje, a linha de Estoril é um promontório de ventos cruzados, às dezenas de línguas e dialetos da Europa que se estendem desde o Norte e desde o Leste, sobrepõe-se um sotaque que sobrevoa o anticiclone dos Açores, há afinal um vento forte que sopra do ocidente e de repente, só depois de termos visitado o passado na casa de Sommer, nos passou pela cabeça que a Linha, nos confins do mundo, segundo a geografia chinesa e a civilidade europeia, é testemunha da inversão do último longo ciclo de emigração no mundo. 
Ann, a minha nova amiga de Miami assegurava-me hoje que há uma febre lusitana daqueles que sabem onde fica a Europa. 
Sim, Ann, eles andam por aí, e não há nenhuma iminência que pareça justificar esta nova centralidade do mundo ocidental, na periferia saloia do Atlântico Norte, mas não consigo deixar de pensar que tem de haver algo de premonitório neste súbito fascínio pelas festas populares, pelas sardinhas assadas e pela indolência dos nossos brandos costumes e até pela nossa falta de ambição. 
Falta o glamour, as sombras contrastadas da urgência e a intensidade das vidas que antecedem a iminência do fim do mundo, mas, ao contrário do que se passava na geração de quarenta em que Lisboa era a única ponte possível para a América, estes parecem vir para ficar. 
Veem afinal a fugir de quem? 
Lá em baixo, para lá da baía, há uma multidão de risos e de gente feliz, em harmonia com a terra prometida. 
Às cinco em ponto, na gare da estação ferroviária, o comboio apitou uma vez só e, quando se afastava ronceiro, mas determinado, a caminho do pôr do Sol e de Lisboa, parecia dirigir-se a um final perfeito de um filme dos colonos pioneiros do antigo oeste. 
Mas o comboio não era a vapor e a última imagem que retive na memória já não era a preto e branco. 
E, na exposição da casa Soller, cada imagem tinha um número e um adjetivo.
Muitos deles premonitórios.



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