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segunda-feira, 22 de julho de 2024

Sons do velho Sul

 


Dentro das muralhas mora a cidade velha, ou a vila adentro como ela gosta de ser tratada. 
A velha senhora mantém-se reservada, a calçada é irregular, as pedras são de tamanhos todos diferentes e intervalos tão imprevisíveis que anunciam desastre em cada pedaço de ruga que a rua tem. 
Este semblante rústico da velha senhora, entenda-se como uma metáfora da cidade velha de Faro, intimida as hordas de estranhos, o que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Entenda-se como uma metáfora do norte de África, como se fosse possível ouvir os sons do bazar, com tanto mar por permeio. 
É verdade que a indolência é despertada pelo verão e pelos fins de tarde de domingo e, ao redor do grande edifício amarelo, a quem chamam de fábrica da cerveja, mas que nunca foi, ouvem-se outros sons. 
Escondidos por detrás dos portões fechados, pintam-se as cores do festival Mar Motto, um festival de manifestos da tão efémera arte urbana a favor de um mar eterno.
Porque até as causas precisam de dia de folga, os manifestos de vilhs estão, como a velha senhora, em modo reservado. 
Mas na associação recreativa há uma menina vestida de negro, protegida por tatuagens com significados à prova de estranhos e provavelmente (ou não) um piercing solitário, não posso garantir, porque os meus olhos ficaram presos na caixa de madeira onde ela guardava as notas de cinco euros, sim, porque hoje há concerto, e os sons também são do Sul, a banda arrasta-nos para os sons do improviso e do jazz e a voz da miúda que canta preenche todo o pátio, em espiral, uma espécie de tornado invertido, e a miúda é compositora e o baterista tem um ar fixo nas paredes do pátio e o tipo do baixo, bate o pé e marca o ritmo, há toda uma conspiração de sons e de cumplicidades que envolvem a vintena de mesas, o mestre do som, os menos jovens de olhos gastos, mas felizes, que preparam as bebidas e que perguntam pelo nosso bem estar, como fosse possível estar mal, no fim de uma tarde de verão com um copo de vinho na mão e um som de enternecida nostalgia (ou seria apenas ao ritmo da decadência da alma velha?) na associação recreativa e cultural de músicos, despojados de tudo o que a arte não precisa. 
E ninguém estranha que, neste local do culto de pureza dos sentidos, afinal de contas as associações recreativas fazem parte do meu passado suburbano de tudo o que a cultura significava para nós, as multidões de estranhos se mantenham longe, e até o ruido dos aviões em aproximação à pista, longe de representar uma intrusão nos sons do pátio, da diva, dos músicos e da audiência que sorve a diferença em pequenos goles de vinho branco, acentua a singularidade do momento congelado no tempo, essa memória intensa mas efémera, do culto subterrâneo e pós-industrial em que qualquer um de nós se poderia ter transformado. 
Quando anoitece, a cidade veste o fato de maestro, no magnífico auditório do teatro das figuras, e a orquestra de gala oferece um espetáculo servido como uma refeição, palavras do maestro Martim, uma entrada suculenta da opera dos três vinténs de Kurt Weil, quando o Jazz invadiu despudoradamente a música clássica, uma história de gente menos recomendável mas também da mulher loura e fatal, a história que tem vários momentos, ele queria dizer andamentos e disse-o de tal forma como se a música sem letra pudesse contar uma história, sim, é verdade que a dele, a de Kurt Weil contava, "quem esteve em Berlim, sabe do que eu falo" o maestro tem um humor fino, mas não permanece imperturbável quando nos empurra cem anos para trás e nos puxa de volta, cem anos são apenas cem anos e o seu sentido de humor é também uma evidência de que conseguimos beber a história da cidade, qualquer que seja a época em que a visitamos, tal como os andamentos desta coletânea de Weil são as vieiras gratinadas do concerto. 
Cem anos é, pois, o mote da noite de gala, cem anos tem música de Gershiwn, uma rapsódia de azul, mais de quinze minutos de uma sinfonia de sons intemporais, o prato principal é servido em Manhattan, os loucos anos vinte na cidade de todos os ruídos e todas as melodias. 
Não envelheceu um minuto, assegura-nos o maestro e o solo de piano prolonga a magia das noites de Verão, cem anos depois sentimo-nos renascidos pela alma velha, não são sons do Sul, mas este Jazz do norte tem as mesmas raízes no sul profundo de África, sim também no teatro das figuras, é apesar da multidão contida que olha para o palco, sente-se a mesma brisa quente que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Opíparo e sem ressentimentos. 
A sobremesa foi servida numa taça de cristal, sabores urbanos de Cole Porter, sem intervalos nem explicações porque já aprendemos que uma música sem letra consegue contar uma história. 
Night and Day.
Doce, crocante, quente e frio, sem compartimentos. 
Hoje descobrimos que, em Faro, ainda vive a alma velha do Sul, que intimida as hordas de estranhos e os mantém à distância.



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