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domingo, 23 de junho de 2024

Os novos filhos da Casa Real

 


Na Calle da Cava Baja, a multidão acotovela-se junto à porta da taberna dos castiços, agora que o Sol desapareceu por completo dos céus de Madrid.
Há uma espécie de herança árabe nesta procissão de fé, a forma como os madrilenos festejam, todos os dias a chegada da noite e a libertação da autoridade do rei Sol, como se vivessem uma vida inteira em sacrifício de fé pelo Ramadão.
Pura ilusão!
Não há fé que se sobreponha à vontade de Madrid tapear nas ruas da cidade, agrupando-se por interesses comuns ou outras afinidades junto às portas do lazer, olhando para dentro onde se come e bebe, vivendo de fora onde tudo o resto acontece.
E até por isso, a ideia de herança árabe desvanece-se, porque não existe no mundo muçulmano de hoje,  tolerância para a indolência com que o clima e a paisagem temperam a personalidade de todos os povos que circundam as margens do mediterrâneo.
Mesmo que os sons do flamengo que ligam todos os bares da rua da cova baixa sejam, em cada nota, um apelo à mística do deserto e dos povos nómadas e, por indução, à memória dos povos árabes. 
O nome da taberna é sugestivo, mas não reflete a frequência eclética, sim é verdade que quase todos falam espanhol, mas há vestígios do império em todas as conversas, em todas as esquinas, sempre que as vozes se sobrepõem aos ruídos da cidade.
O império das Americas que se estilhacou em dezenas de formas de entoar a língua mãe e dezenas de países que, a partir de um colonizador (e também de um libertador) único se desventraram em dois séculos de múltiplas vivências turbulentas.
E eles não se escondem nas ruas de Madrid, é são cada vez mais numerosos na movida que venera o manto de escuridão que dá voz ao novo mundo. 
Uma Espanha cada vez mais diferente, portanto! 
E, na Calle da Cava Baja, uma espécie de entranhas da perdição ou de profundezas do inferno onde a gula e o álcool explicam a maior parte deste ruidoso convívio entre a comunidade hispanica. 
Por isso mesmo, a única herança mocarabe de Madrid que sobrevive ao tempo, à proximidade geográfica, a uma antiguidade comum e a uma longa ocupação da península, são os acordes de um flamengo de sons tribais, uma união em torno do mediterrânico com supremacia árabe e muçulmana. 
Sobre esta inconfundível herança, os nossos irmãos preferem acolher os que colonizaram, na longínqua américa, do que partilhar a memória nas vizinhanças do mar interior, em que foram subdidos do califato. 
Mas o som da música tribal que, decididamente vem do Sul, tem momentos em que abafa as vozes do presente e interrompe este burburinho latino. 
Nas paredes do Cava 67 (como poderia ser de qualquer outro bar de mesas e bancos altos, nesta ou em qualquer outra das ruas da capital) um cubano de nacionalidade indiscutível mas que foi condenado ao anonimato pelo dono do bar, parafraseia Dom Quixote "como não és experiente nas coisas do mundo, todas as coisas que têm alguma dificuldade, parecem-te impossíveis. Confia que o tempo sabe dar doces saídas a muito amargas dificuldades" 
Inquietudes (que revelam um desejo maior do que uma certeza) de Cervantes com as suas mais remotas origens , ou com as origens da remota mestiçagem americana? 
Ou apenas moinhos de vento nas planícies de Castela? 
Nada que os  faça arrefecer a sua vontade de serem perfilhados como os novos filhos da casa real!



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