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segunda-feira, 15 de julho de 2024

Os fantasmas da liberdade

 


Vista da margem sul, da encosta do convento de Santa Clara, os anos não parecem ter passado por ela, sem rugas no horizonte, as fachadas da cidade histórica coradas pelo Sol da tarde por ser envergonhada e provinciana, e há um sotaque beirão que não descola da boémia que cheira a cerveja e invade as calçadas que serpenteiam a Sé velha. 
Olhando com atenção redobrada por cima das pontes, há um espelho de água que absorve toda a tradição que se acumulou nos séculos de vida académica e de conhecimento partilhado. 
E de boémia incontida. 
Da margem esquecida do Mondego, vive-se uma atmosfera de Outono nos jardins do convento apesar do Junho avançado, que o calendário não consegue desmentir, provavelmente porque é domingo à tarde e as tardes de domingo são tristes e nos impelem para as memórias do passado. 
Ou provavelmente porque as minhas memórias de Coimbra viveram todas do outro lado do rio, onde a ação acontece, seja qual for a geração ou a década. 
Ou porque o convento se despojou da clausura, dos hábitos austeros, orações e aí jesus, sim, quando Coimbra era também um centro do roteiro da religiosidade, uma porta da religião para o mundo laico da ciência. 
Do outro lado do rio, a uma distância segura, que não comprometa nem os rituais, nem as crenças, nem o acesso privilegiado a Deus. 
Abanava a cabeça, quase descrente, não filha, não pode ser aqui, não é aqui que mora a Bienal, Ano Zero dos fantasmas da liberdade. 
Enquanto olhava para as minhas memórias de Coimbra, há lugares assim, que passam incólumes à nossa passagem, e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de cheiros a serra. 
Mas, afinal, a bienal mora mesmo aqui. 
Os corredores do convento alternam entre os despojos de um local em vias de perder a sua memória, uma pré-ruína de vazio do qual sobram apenas gritos de morcego produzidos digitalmente que percorrem os tetos do convento ao ritmo das correntes de ar, e as interpretações ousadas do presente, para que nada nos parecesse sequer familiar, como se mais importante do que o significado das coisas ou das palavras fosse a liberdade de expressão sem significados precisos. 
Arte contemporânea, portanto. 
Com locais de descanso, intervalos nas celas abertas, janelas para a cidade, sempre no chão pejado de almofadas, como se a liberdade também precisasse de pausas e de momentos de contemplação 
Há referências objetivas dos curadores da exposição ao filme de Luis Bunuel de 74, ao cinquentenário da Revolução dos Cravos, e ao centenário do manifesto surrealista de 1924.
E há uma referência muito explícita ao significado literal das palavras, os fantasmas da liberdade remetem-nos para a disputa entre o desejo e a realidade. 
Quase um lamento sobre as limitações da liberdade, não enquanto conceito, mas enquanto "paz, pão, habitação, saúde, educação" 
Apesar de, na Bienal Ano Zero, as instalações não sejam, de todo, um slogan renascido dos cinquenta anos da história da liberdade. 
O experimentalismo do século vinte e um já não se alimenta de memórias e os jovens artistas não perdem tempo a pensar como é suposto se conquistar a liberdade. 
Na outra margem, o dois cavalos engasga-se enquanto procura alcançar a praça da República, já na década de oitenta era uma relíquia, sempre sobrelotada a juventude era rebelde, mas não demasiado, ainda havia resquícios da revolução nesta geração que nasceu tarde de mais para ser verdadeiramente rebelde e anárquica e estávamos todos a ficar fora de época, quem havia de se lembrar de voltar a Coimbra sem ser estudante, procurávamos aspirar as últimas migalhas de aventura, álcool, festas e inconsciência, antes da idade adulta começasse a assumir o controlo da tua liberdade. 
O dois cavalos é a única memória nítida que me resta desta época de vapores e libidos exacerbados. 
Coimbra, finais da década de oitenta. 


Pendurados sob os tetos do corredor do primeiro piso do convento, os cartazes de Carla Filipe são únicas imagens da revolução e das memórias que vivemos dos tempos em que o tempo ainda era, para nós, imortal, as caras das mulheres que substituem os rostos dos manifestantes, não eram relevantes as causas porque o manifesto era feminista, e os tons vintage dos cartazes eram a afirmação da nossa época, em que a liberdade não era um conceito, tinha corpo, imagem, cor e rosto humano. 
São também, e afinal de contas, apenas memórias do tempo das nossas liberdades conquistadas, no tempo em que teve de ser, nem sempre as melhores memórias, quando queríamos ser livres mas não sabíamos o que verdadeiramente isso representava e quando percebemos que a liberdade significava muito frequentemente solidão e desassossego. 
E em Coimbra, não há vestígios da passagem do tempo e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de uma nostalgia bem resolvida. 
Sem vapores nem libidos exacerbadas. 
Quantos cavalos são necessários para mudar o mundo? - questiona-se a artista Priscilla Fernandes, mas o curador apressa-se a assegurar que se trata apenas de uma sátira, mas nas paredes do fim da exposição, os cavalos surgem libertos de conotações de dominação, heroísmo, autoridade e força ostensivo, dedicando-se ao lazer, um privilégio que se julgava exclusivo dos humanos. 
Quando curvávamos, a todo o vapor, no Dois Cavalos da República de Coimbra, sabíamos, pela experiência dos outros, que nunca iríamos virar, e a suspensão do Citroen era a única garantia que a nossa liberdade precisava. 
Não há fantasmas que durem sempre, quando insistimos em cultivar o imaginário da liberdade 
Mesmo que tenhamos de regressar às longínquas memórias de Coimbra.




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