O Berliner MorganPost proclamava
a 17 de março que a Kurfürstendamm estava outra vez na moda.
Estreava o já aclamado “Ku’Damm 59”, depois de 56, a
segunda série de um filme que narra o renascer da nova Alemanha do pós guerra,
e o título não podia ser mais sugestivo quanto à importância simbólica da
Kurfurstendamm, como a montra do milagre económico da guerra fria ou da ânsia
de liberdade e emancipação da nova juventude pós 45.
É uma avenida com números impressionantes. Construída
em 1883, perdeu para os Campos Elísios em metros de larguras 70 / 53 mas
duplicou o seu comprimento, imaginem 3600 metros, números mágicos para os
últimos suspiros de um dos grandes impérios da europa central
E neste sucesso
comercial da ZDF, os números representam os anos da saga, não os números da
porta ou outra qualquer medida de espaço, imensidão ou soberba.
Mas não consigo deixar de pensar que esta gigantesca
avenida não mais despertou do sono profundo, desde que deixou de existir,
provavelmente, a única razão pela quase ela precisava de afirmar a sua
exuberância: o muro da cidade
Aquela que, nos anos do pós-guerra foi transformada
num símbolo do ocidente triunfante foi engolida pela desmensurada dimensão que
a cidade descobriu, nela própria, após a pulverização da fronteira.
Hoje, como há vinte anos, sente-se um perfume de
decadência no ar, nas vitrinas quadradas que provocam os transeuntes na
competição desenfreada pela largura e pelo comprimento.
Apesar do persistente esplendor do seu comércio, da
elegância incontornável das suas esplanadas e dos seus hotéis, ou os veludos
austeros e imperiais dos restaurantes, há um olhar vintage que se perscruta nos
olhares dos empregados de mesa, dos rececionistas e das empregadas de balcão,
como se tivéssemos regressado do futuro
à geração beat, às mini saias e às calças de boca de sino, sapatos de
tacão alto e os shows de rock and roll, aos homens de meia idade de fatos
claros e gravatas finas, cabelos penteados para trás e empastados de
brilhantina, estilo convenções do SPD nos anos do humanismo glorioso, da crença
no Estado Social como a solução para o futuro de uma Europa unida e, sobretudo,
de Willy Brandt.
Os traços da decadência estão precisamente na
arquitetura vanguardista das eras de cinquenta e sessenta, nas formas quadradas
dos inovadores centros comerciais, lojas, cafés e cinemas que levantaram a
cidade das cinzas da guerra numa apologia à modernidade do vidro e da
funcionalidade das formas geométricas, uma afirmação da emergente sociedade de
consumo que transformava os objetos em instrumentos de consumo prático, barato
e disponíveis para utilização das massas.
O periódico alemão argumenta, contudo, num tom de
indisfarçável revivalismo, que esta avenida era o “palco da expressão burguesa”
e criou, ao longo das décadas seguinte, uma atmosfera incomparável.
Mas não consigo deixar de pensar que esta gigantesca
avenida não mais despertou do sono profundo e dos espaços por preencher, agora
que as novas tendências de modernidade se deixam tentar pelo apreço da dimensão
humana das coisas.
Reconheço que não me consigo distanciar da primeira
chegada a Berlim no comboio da noite proveniente de Hannover, atravessadas duas
fronteiras, guardas austeros e arame farpado, uma chegada anárquica a Berlin
Zoological Garten, a linha que continuava para leste, os milhares de
transeuntes que se atropelavam nos corredores escuros e nas passagens
subterrâneas, refugiados africanos, representantes de países em
autodeterminação, simplesmente viajantes, multidões que saltavam para as ruas,
que enchiam os restaurantes e os passeios da avenida de cinquenta metros de
largura, automóveis que lotavam as faixas de rodagem da grande avenida, uma
multidão que crescia com as horas da noite e eu, que procurava dormir no
primeiro andar da pensão flórida, um hotel sem casa de banho, quartos despidos
e corredores austeros, sonhava com o ruído dos motores, das conversas do
tilintar dos copos, como se aquela – e as outras duas que se seguiram – fossem
a última noite antes das premonições de fim do mundo que os Messias barbudos
apregoavam nas esquinas da Joachimstrasse, acordava sobressaltado a todas as
horas ao longo da noite e os ruídos ligavam a madrugada à manhã.
E no regresso às três da manhã, esquivando-me entre
lambretas e automóveis estacionados em segunda fila na faixa descendente, as
mesmas multidões multinacionais, a mesma gare lotada e ruidosa, apenas um
silêncio de gelo quando se aproximava o comboio que chegava de Moscovo.
Por mais filmes que tenha rebobinado nos últimos 33
anos, nunca consegui entender o que por ali fazia e circulava tanta gente e
tanta diversidade, sendo Berlim 85, uma cidade cercada.
Nessa perspetiva, nunca mais assisti ao acordar da
Ku’Du.
Não deixo de reconhecer a bondade do esforço do
Berliner MorganPost em recordar-nos que voltam a regressar as galerias de arte
ao lado Oeste da cidade, é verdade que a Gare do Zoo continua a manter uma
atmosfera de desespero vagabundo de outrora (diria mesmo que o tem recuperado
ano após ano) e que os transeuntes não são assim tão poucos, sobretudo se não
fosse sexta feira santa e o comércio não estivesse respeitosamente encerrado
Há sinais, querido periódico de Berlim, que o lado
Oeste já começa a perceber quais os requisitos para readquirir uma auréola
prometida de modernidade.
A Galeria C/O Berlin em Amerika Haus e a Fundação
Helmut Newton, uma extraordinária retrospetiva da audácia, do glamour e da
nudez feminina de um fotógrafo de moda berlinense desdenhosamente provocador e
dos seus muitos amigos que, no limiar do surrealismo, enchem o edifício da sua Fundação.
A cem metros uma da outra com a Gare da Zoological
Garten, entre as duas.
Ambas tão ao género do que já foi a Ku`Damm.
Este lado da cidade parece querer entender a mensagem,
chamou os guindastes e parece estar a ultrapassar a sua fase de negação, a
ideia antiga de que ser recente, significa modernidade.
Mas é difícil vencer o chamamento de leste, o charme
da reabilitação do antigo com o cheiro a spray da arte urbana e marginal, uma
estética de formas curvas e não convencionais, e é uma tarefa gigantesca unir a
imensidão dos espaços e anular o desmesurado Tiergarten que foi criado para separar
as cidades e não para as unir.
E o Berliner MorganPost vacila entre a saudade e o
regresso, como se no caso da Kurfürstendamm isso significasse a mesma coisa
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