Saímos do U-Bahn em Kottbusser Tor e o contraste não
podia ser maior.
Apenas a quinze minutos da Ku’damm regressámos à superfície numa longitude distante, daquelas
que merecem os inevitáveis comentários de que não há cidade em que não nos
tragas para sítios assim.
Sim, Kottbusser Tor é um lugar diferente, o núcleo do
enclave da emigração turca, mesmo quando Kreuzberg era o bairro de fronteira,
quando as primeiras vagas dos novos estrangeiros partilhavam esta zona de
ninguém com artistas, músicos e todos os movimentos alternativos das últimas
cinco décadas.
E quando regressámos à superfície, deixámos de
entender onde se revia Berlim, apenas sentimos uma maior densidade no ar.
Talvez nalguma tensão entre culturas.
Talvez nas avenidas largas traçadas na diagonal a
partir da praça, ou nos homens de barba escura e olhar penetrante que se
sentavam nos bancos da praça, como se estivessem a contar peças de caça, ou nas
fachadas das lojas encerradas cobertas de graffitis (afinal de contas era sexta
feira santa, mas isso não tem muita relevância, mesmo em território muçulmano)
ou provavelmente nos cheiros a especiarias, a couves cozidas e a guisados,
borrego suponho.
E o choque terá porventura sido maior porque não
houve pré-aviso e porque poucos acreditam que, apenas numa viagem de quinze
minutos para leste, num comboio cheio de turistas e arianos, se possa alcançar
uma versão tão diferente e boémia de Istambul.
Apenas na plataforma todos perceberam que a cidade é,
desde há muito, um fenómeno de multiculturalidade.
Mas, ao descer a Kottbusser Strasse logo se entende
que Kreuzberg não é um bairro comum.
Ao longo do Paul-Lincke- Ufer, desfilam todos os
sinais de diversidade que a cidade despeja numa tarde de feriado, aproveitando
as promessas de Verão que a próxima semana vai, segundo a meteorologia, trazer para
ficar.
E, ao longo do canal, aumenta o leque de sabores, de
maneiras de vestir, de sotaques e de línguas nativas, há um raio de sol que
anima os locais e acentua a tolerância cultural.
Também há álcool, muito álcool, que descansa nas
margens que se transporta em garrafas de litro mas, e as surpresas sucedem-se,
não há barreiras etárias na forma de celebrar a folia e as garagens de som e
imagem convivem com os apartamentos reconvertidos de uma nova juventude burguesa,
mas com antecedentes e antepassados alternativos.
Talvez, porque em tempos, os arredores de SkalitzerStrasse
se encontravam cercados por fronteiras a Norte, a Sul e a Leste, vive-se ainda
uma sequência de cenas de terra de todos, muitas famílias que se banham nas
piscinas interiores de Gorlitzer Park, os últimos moicanos do álcool e do
charro se estendem pelos bancos de jardim, sem espaço para mais manifestações
de arte urbana, muitos apelos à arte contemporânea alternativa, miúdos que
jogam com bola por detrás de redes semi destruídas, jardins infantis de um
mundo qualquer, armazéns de uma industria que vivia na periferia e a magnifica
linha de metro que atravessa o bairro nas alturas até desembocar na Oberbaumbr.,
a ponte de todos os espiões e a atual linha de fronteira entre a cidade
história e os subúrbios alternativos, as praias fluviais, os delírios tropicais
e os parques temáticos e referenciais.
Não posso deixar de me impressionar com o magnífico
exemplo de arquitetura construtivista que é o monumento aos soldados
soviéticos, em Treptower Park, a sul, para lá da última fronteira de Kreuzberg.
Mas é para Leste que a fúria de construção da nova
cidade residencial parece não ter fim.
Para lá da ponte, para norte ao longo de mil e
trezentos metros de muro entregue aos artistas de todo o mundo que festejam o
século vinte e um, ainda para além da OstBanhof, desaparecem os sons e os
sabores exóticos e alternativos e resistem as grandes avenidas inspiradas nas
linhas quadradas soviéticas, ao longo da tão moscovita Karl Marx Allee que
termina em triunfo na não praça de Alexander.
Para quem ainda não se tinha acostumado à
instabilidade cultural de Kreuzberg, esta subida aos gelos da grande pátria
russa não pode deixar de criar vertigens, mesmo que hoje se procure encher os
espaços vazios com uma nova arquitetura futurista dos súbditos do vidro.
A pedra soviética e o vidro da nova Berlim.
Apenas em alguns quilómetros a cidade irregular, irrequieta,
marginal e quase exótica, readquiria a frieza eslava, mas perdia os sentidos
perante a geometria obsessiva da massificação urbana.
Prometi à família, conceder-lhes um fim de tarde de conforto
visual e de partilha de um espaço de famílias, o bairro das mulheres grávidas e
da mais perfeita reconstrução de Berlim antes da guerra: Prenzlauer Berg.
Mas a família não achou piada imensa, porque não
havia nada para ver.
Apenas alemães felizes e um fim de tarde introspeção
(para os estrangeiros) e de encontros (para os locais).
Ainda hoje penso que elas não perceberam que tínhamos
feito, naquela tarde, uma volta ao mundo em menos de dez quilómetros.