Em dia de tempestade nórdica, a
capital czar revelou-se dentro de portas de forma absoluta, porque desconfio
que não há subtilezas.
Os milhares de obras de arte das
grandes escolas de pintura europeia, compradas (nem todas as potências
europeias o conseguem garantir) pelo mundo inteiro refletem a necessidade de
afirmação da Rússia como potência mundial.
Depois, certamente num plano
secundário a admiração dos Romanov pelas pérolas da cultura europeia.
É no Hermitage que St. Petersburgo se
pretende afirmar central e cosmopolita.
Mas em dia de tempestade nórdica,
percorremos os rios que nascem da água do grande rio e afundamo-nos nos
subúrbios sem tradição palaciana e imperial à procura da outra metade, onde
renascem os templos da nova arte, antes que a chuva nos faça perder a
consciência.
A aparente dificuldade de comunicação com os russos é
provavelmente uma afirmação de diferença, de distanciamento em relação às
origens da antiguidade clássica ocidental.
Ou não.
A espiritualidade desta nova arte, prolonga o
fascínio pelas mitologias também elas helénicas, como no renascer da nação
russa no século 17.
“Cristo e o
deserto”
“Martinho e o
pedinte”
“Druidas,
jardins do amor”
“Adão e Eva,
memórias da terra”
São os títulos dos quadros da primeira sala do quinto
piso.
Mas também de revelações, que são surpreendentes,
apenas para quem, como nós, desconhece a história deles.
“A consciência da inconsciência das multidões é a
justificação para a existência de uma oligarquia de homens influentes que
conduz as multidões nas questões de sobrevivência do estado”
Sempre foi assim desde o início da nação, enquanto
império, ou com pretensões. Um estado autocrático que não se intromete na vida
quotidiana
E no ERARTA a irreverência da arte
contemporânea também se faz de mensagens que nos provocam arrepios de
desconforto, a nós crentes da filosofia da antiguidade ocidental e que mesclam
o construtivismo revolucionário do século 20 e as referências mitológicas para
desconstruir as dicotomias clássicas da Crença e do Anticristo
Tal como a arte russa do século 19, as
visões artísticas russas do século 21 são surpreendentes de modernidade e de
entidade própria.
Quando aqui chegámos questionávamos como é possível
conciliar a autocensura com a irreverência da arte de vanguarda. Afinal é!
Como também foi possível no reinado de Nicolau I, no
século do iluminismo, das artes e da glasnost
Frequentemente, e com recurso a
revelações tão inesperadas quanto familiares e de perceção óbvia, não fossem os
russos um povo moldado pelo hiper-realismo.
E nós que adoramos perspetivas
desconcertantes.
Como as de “Maria Madalena”, “Odisseia e as sirenes”,
“Anjo no telescópio”, “Ivan, o terrível, a matar o seu filho” “O visitante
Além-mar” ou “The appearance
of god Veles in the forum of embryonic cosmos”, todas com uma ordem
precisa e sem tradução.
Saímos do ERARTA às 10 da noite,
cheios de visões misturadas de Ortodoxia religiosa e mitologias da antiguidade
ocidental.
E de mais um jantar cosmopolita que
parece não ter horas de fecho.
Cá fora, no subúrbio deserto, a chuva
era apenas o reflexo das ruas nas luzes amarelas dos candeeiros públicos e um
velho rondava a nossa espera e, entre o álcool e a falta de convicção, pedia
dinheiro e evaporava-se nas nuvens que ainda persistiam no céu e na noite.
E, regressados às raízes do império,
já longe das onze da noite, ninguém parecia interessado em voltar para casa.
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