Infinito para além é o desenho que lhe
rasga a pele por conta da aventura alemã, da amiga brasileira e do reencontro
na primavera russa, por alturas do circo do futebol.
Nós éramos refugiados do diluvio
moscovita que nos tinha empurrado para o lobby do hotel que vivia em círculo
aberto com predominância das cores brancas e os formatos de uma nova geometria
de espaços.
E ela era a rapariga do bar
Extrovertida, podia chamar-se Irina,
mas o nome era o menos expressivo no olhar que saltava ao longo do balcão, que
se escondia nas cornijas do bar ou nos levitava dos bancos altos quando
falávamos entre nós o português de Portugal.
Mostrou-nos a tatuagem no braço,
primeiro com orgulho, depois com uma inquietação que crescia na mesma medida em
que os colegas homens começavam a rondar a nossa conversa, de um lado e do
outro do balcão, em que as meninas da receção acenavam com as cabeças louras,
lá longe, no espaço aberto, e interessava-se pela nossa opinião sobre a cerveja
russa, jorrava uma curiosidade tão fluida como a espuma que saía dos barris, “gostam
da cerveja russa?” e, perante o nosso acenar sincero, respondia que a amiga
brasileira detestava a cerveja russa e que, durante as duas semanas do Mundial,
beberam, comeram, divertiram-se e “whatever else” e nós não perguntámos mais nada,
por pudor ou porque os outros continuavam a rondar o local, atestando cervejas
imaginárias e pratos de salgados para clientes que não existiam no balcão.
E ela mostrava a mensagem cósmica, perguntava-nos
se os portugueses entendiam os brasileiros e nós acenámos com a ingenuidade de
um povo que fala a mesma língua, mas não partilha os mesmos significados e não
alcança o misticismo mestiço dos irmãos além-mar.
Não temos tatuagens, insistíamos
perante a incredulidade dela, não entendemos o significado subliminar de
infinito para além, nem como mensagem de amor eterno, mas esforçávamo-nos por
aceitar, afinal de contas “cada um faz o que está na sua consciência”
enfatizava ela não deixando de olhar de soslaio porque os outros pareciam
subitamente chamados à conversa quando ela afirmava que já tinha duas tatuagens
na perna e nós, por pudor ou porque as sensibilidades russas não são o nosso
forte, não perguntávamos mais nem pedimos para ver, apenas acenávamos obedientemente,
“sim, claro, a nossa consciência é que conta” e ela perguntava se não bebíamos
mais uma cerveja russa e nós, relutantes, dissemos que não.
Ela pareceu desapontada, porque não
tínhamos tatuagens, porque concordávamos com tudo, porque não bebíamos mais
cerveja porque, mesmo que eventualmente de forma vaga, a nossa presença e a nossa
língua lhe lembrava a aventura alemã, e os momentos em que elas se sentiam
capazes de transformar o mundo sem olhares reprovadores nem culpas inúteis, como
eu a compreendia com, pelo menos, trinta anos de avanço, ou de atraso.
Enfiámo-nos nas profundezas do metropolitano de Moscovo e fomos
apanhar o expresso da meia-noite.
Adormecemos sobre os carris que nos
levavam para norte e sonhámos muito, com as tatuagens da rapariga do bar, a
vontade de mudar o mundo, o dilúvio que caíra sobre Moscovo, as imagens dos
veteranos que defenderam as cidades expostas à chuva dos jardins do anel da
cidade, as sete irmãs de Stalin, a juventude bem vestida que apenas se queria proteger da chuva, navegar na net de linguagem universal e sons de Amy Winehouse e a chuva que nos tinha perfurado os ossos só porque não queríamos ir embora sem ver a Casa Branca, teimosia latina de não perder nenhuma referência histórica
E com a gigantesca praça komsomol'skaya onde Lenine ainda discursava às massas, eles são milhões e daqui partem comboios para Pequim, Vladivostok com travessia da Sibéria em sete dias e para onde o teu imaginário te levar.
E acordámos no Báltico do frio cortante e do céu azul.
E com a gigantesca praça komsomol'skaya onde Lenine ainda discursava às massas, eles são milhões e daqui partem comboios para Pequim, Vladivostok com travessia da Sibéria em sete dias e para onde o teu imaginário te levar.
E acordámos no Báltico do frio cortante e do céu azul.
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