Há um sentido para procurar o Kremlin quando chegamos
a Moscovo.
Afinal de contas o castelo não é apenas um símbolo da
nação, é a própria origem da Moscóvia, quando esta lutava para nascer e empurrava
a horda dourada para Oriente.
E saímos cedo de Kievyscaia, um Sábado de manhã de um
Sol que ainda não exalava calor, mas despejava luz nas pontes sobre o rio
Mockba e refletia o vidro da cidade nova que se erguia a Ocidente, bem para lá das
fronteiras, do círculo das sete irmãs, os orgulhos arquitetónicos de Estaline
Plantada a norte, emergia do horizonte a Casa Branca,
um bloco de cimento pintado de branco que trocou a sua origem soviética pelo
grito da desagregação do império.
E, à medida que decifrávamos os olhares fortuitos e
os novos símbolos, percorríamos a história numa cronologia inversa ao longo da
Arbat romântica de Pushkin, de casas quase térreas, cores suaves como as
imagens ligeiramente saturadas que retemos na memória rural dos grandes
clássicos da literatura russa dos séculos dezoito e dezanove.
E o centro da cidade é um território de conquista, um
local de culto dos primeiros Tzars, de santificação dos mártires da guerra com
os mongóis e marca definitivamente o início da expansão do reino da Moscóvia em
direção a Leste e a Sul.
Por isso, o castelo das cinco igrejas, erigidas pela
ortodoxia entre os séculos quinze e dezassete marcam o (primeiro) período
orientalista do império russo, antes da chegada de Pedro, um homem do mar que
não apreciava a continentalidade e que se considerava, acima de tudo, europeu
e, por vezes, demasiado atraído por Roma.
Por isso, a fisionomia do centro de Moscovo é
defensiva, ortodoxa e rodeada de muralhas e de suspeições.
Por isso, é ao Kremlin que a oligarquia sempre regressa
quando se sente ameaçada pelo Ocidente e se recolhe entre as hordas conservadoras
da igreja.
E, sem surpresa, com alguns séculos de interregno
Petrino o seu último símbolo construído foi Palácio Estatal do Kremlin cujas
formas quadradas e a abundância de vidro não permite disfarçar a sua origem no
século vinte revolucionário e bolchevique.
Por isso, o Kremlin é a porta de entrada da Rússia
nas suas ambições asiáticas e nas desconfianças europeias.
E, tal como parecem disso estar convencidos os novos
historiadores da velha Rússia, o interior do Kremlin é tão pouco relevante para
o presente como Ivan, o Terrível (afinal de contas apenas Ivan IV) e os seus
demónios pessoais o foram, nos seus cinquenta anos de reinado, para os turbulentos
anos do século que o sucedeu.
O Kremlin não é a Rússia, é provavelmente o local
menos local de toda a cidade, quiçá de todo o país (mas também não tem de ser)
mas antes a imagem que eles querem que nós tenhamos da sua realidade e um local
de peregrinação para o imenso povo anseia respirar os vapores do império
Do outro lado das muralhas, na praça Vermelha, que
deve o nome a uma analogia entre a palavra e um sinónimo de beleza e que, ao
contrário do que parece, não usa a cor com qualquer conotação ideológica,
passeiam milhares de estrangeiros, fascinados pelo mausoléu de Lenine e pelas
imagens bélicas dos grandes desfiles militares.
Os verdadeiros moscovitas preferem espraiar-se pelos
jardins exteriores de Alexandre, onde se homenageiam os heróis da resistência
aos malogrados invasores ocidentais da estepe russa, Alexandre I o homem que
derrotou Napoleão e os milhões de soldados desconhecidos que derrotaram Hitler.
No último dia de Verão, um mau presságio para todos
aqueles que se sentem estrangeiros no castelo do Kremlin
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