A entrada na Alameda dos Heróis do Parque da Vitória foi como que
se o século passado tivesse desabado das nuvens numa chuva não suficientemente
intensa que apagasse os vestígios, mas tão insistente que turvava as memórias
em catadupa, uma cascata da qual não se discernia senão uma espuma de tremores,
sons de canhão e, por fim, um silêncio sepulcral.
Respira-se no silêncio da alameda, um eco cerimonial que atravessa
a fachada do museu da guerra patriótica, um edifício que nos recebe com um
abraço de formas côncavas, uma familiaridade que nos recorda, mais do que uma
geografia ou uma ideologia, uma época.
Um silêncio que se ouve no corredor de luzes que nos conduz à
escultura que representa a mãe Rússia, revestida de um branco que reduz a
definição das suas formas e alimenta os mitos da nação invencível.
Sempre com um som de marcha militar, cântico revolucionário ou
simplesmente um hino, tão baixo que parece ser destinado ao inconsciente, a não
incomodar a memória dos heróis ou os rituais de cerimónia.
As imagens seguintes podiam ter saído de um diaporama, de dezenas
de diaporamas
Mas são as imagens dos inúmeros meses de cerco nazi a
Leningrado que ficam gravadas na nossa retina, sala após sala, numa repetição
de horrores e triunfos de forma tão sistemática que confundo Minsk com
Estalinegrado e, algumas salas depois, já não sou capaz de me recordar do novo
nome da cidade do timoneiro da guerra patriótica.
E as guardiãs dos templos, que são as salas dos diaporamas,
depressa desfazem os nossos equívocos, afinal a farda marcial e a postura preservada
pela história revelam os novos sinais dos tempos, uma genuína preocupação pela
nossa orientação na cronologia dos factos.
Claro que, depois do apocalipse, as memórias foram cuidadosamente
reconstruídas, poucos duvidam que, no olho do furacão da violência e da
barbárie, restasse uma imagem clara da cronologia dos factos.
Para além de que uns eram invasores e outros invadidos.
Memórias reconstruídas por uns e pelos outros, exceto pelos
vencidos, a quem lhes foi retirado o direito de ter uma visão própria
E, para além dos vencidos, havia a nossa visão e a visão deles, do
inferno, dos sons, luzes e fogo em que a Europa se tornou nos meados do século
vinte, que foi cuidadosamente retocada também porque a construção das
ideologias não convive bem com as imprecisões provocadas pelo caos.
Surpreendente, a forma didática como os crescidos, vestidos de
pioneiros, recebem dezenas de crianças, também elas vestidas de pioneiros e de
sorrisos concentrados, e lhes explicam com uma forte convicção sonora e visual,
a visão russa da história soviética do século passado
A descontextualização da Guerra Patriótica (ou afinal de
contas os soviéticos também eram russos) e o culto dos heróis e do sacrifício é
(especialmente) uma forma de exorcizar os inimigos e afirmar o orgulho da
pátria.
Termos contornado o século vinte, permite-nos admirar os espaços
desprovidos de qualquer retórica ideológica e centrar-nos apenas na forma como
os russos viveram o seu presente e, hoje, procuram reproduzir o seu passado.
Mas, quando assomámos do túnel do metro de Pobedy, não
imaginaríamos nunca, que bastava substituir a bandeira da foice e do martelo
pela tricolor, para que a toda uma memória reconstruída fosse preservada como
se, nunca tivesse existido uma nova revolução de fim de século que tinha
renegado tudo o que haviam defendido durante um século de revolução.
Bem, afinal nem tudo.
Surpreendentemente, existe uma visão oriental da guerra, a versão
deles, sem o distanciamento de quase um século de paz relativa, que sobreviveu
à hecatombe ideológica do século vinte e um
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