Hoje é dia da Maratona de Moscovo e era impossível não perceber
que algo de importante corria na cidade porque o anel, a avenida circular que
envolve o centro histórico com uma floresta de jardins e um relvado de árvores
frondosas, escorria as primeiras lamas do Outono em direção ao rio Mocka,
porque a Catedral de Cristo Salvador não abria as portas ao Domingo, porque
havia milhares de homens e mulheres fardados a percorrer os labirintos que
circundam a primeira grande obra de recuperação do novo regime, inaugurada no
inicio do século como um presente do novo Estado ao segundo renascimento
cristão ortodoxo da Rússia.
Aliás a maratona de moscovo não parecia ser um momento de festa
para as multidões, simplesmente porque não havia multidões a assistir, também é
verdade que as maratonas são feitas para quem corre e não para quem vê, apenas
os corredores, já muito cansados e conformados com a sua natureza solitária, provavelmente
porque haviam escolhido o fatídico quilometro trinta para desfilar diante o cristo salvador, entre
o kremlin nas costas e a curva do rio para a direita, na sua frente.
Não havia multidões a aplaudir porque todas as ruas estavam fechadas
e porque os homens fardados colocavam barreiras, vigiavam os transeuntes e
organizavam o transito dos peões em faixas herméticas, corredores que nos
afastavam das fachadas da maior igreja ortodoxa de moscovo e nos deixavam desconsolados , porque era domingo e o novo ícone da ortodoxia estava selada e a
culpa era da maratona, dos homens fardados que não paravam de chegar e nos
olhavam, desconfiados, quando os poucos curiosos se abeiravam das barreiras que
nos separavam dos atletas e batiam palmas aos últimos resistentes de Atenas,
certamente os últimos de uma fila longa e de uma corda desfiada de atletas.
Os homens correm sozinhos, mas a cidade Estado está salva e a
mensagem foi entregue.
E, em assuntos de segurança interna, ninguém questiona a
autoridade do estado sobre o direito da expressão individual dos cidadãos.
E não havia cidadãos a trocar votos de amor eternos nos cadeados
da ponte, nem a render homenagem aos símbolos imperiais que se avistavam da
ponte, a Norte a Basílica, a Leste o Kremlin e a Ocidente a grande estátua de
Pedro ao leme da sua Armada, uma silhueta que enchia o horizonte.
E em todos os pontos cardeais, as sete irmãs de Estaline.
Em dias de maratona, circular é a palavra, as emoções podem
esperar porque as memórias de insegurança ainda estão vivas e só as meninas dos
abastecimentos aos atletas do quilómetro trinta gritam, esbracejam e estimulam
os homens da maratona.
E nós perdemos a última cena da ascensão, contornámos apressadamente
a ilha do Outubro Vermelho, uma promessa infundada de ócio e lazer, que
prometia ser um trocadilho de irreverência mas não era e, cheios de fome,
atravessámos a ponte e fomos almoçar à margem sul, entre famílias burguesas e
crianças bem educadas, mas ninguém se pareceu importar com isso.