Há lugares assim. Discretos como Audrey Hepburn
Sim, havia um retrato de Hepburn na parede.
Provavelmente a homenagem do homem atrás do bar à
morena que servia às mesas.
Mais tarde, algumas semanas depois, desfizeram-se as
dúvidas, era o espelho da mulher que servia às mesas, imaginada pelo marido de
barba grisalha que se movia silencioso entre a cozinha, o bar e a máquina
registadora.
Lugares que se vão entranhando à medida que o puto
vai saltando de lugar, ele e a sua máquina de jogos, à medida que a mesa do
lado – e as outras - se vão enchendo de francesas de idade média alta que se
acotovelam entre pequenas tijelas de sopa e canapés e que falam alto e francês entre
elas e um alemão sussurrado para a morena que serve às mesas e sorri, em todas
as línguas.
E o espaço de esquina na Rennveg 11 vai absorvendo a
chuva copiosa que grassa na rua do elétrico, secando os cabelos revoltos e as
roupas fustigadas pela água que anunciava neve para os próximos dias.
Há lugares assim, que só reconhecem a genialidade
depois de dias de digestão tão suave quanto a música que absorve o ruído intrusivo
das mulheres que não param de entrar e sair, empurrando o puto para o balcão,
hoje que ele estava introspetivo, a semana passada jogava à bola por detrás do
balcão, de certeza com as mesmas cores de amarelo e preto com que enfrentava
hoje, a máquina de jogos.
Semanas depois as dúvidas eram desfeitas. Ele tinha
nome mas nós não descobrimos, oito anos bem medidos e era filho do casal, do
barman e cozinheiro de barba grisalha e da distinta morena que servia às mesas
e que, aos olhos do marido, parecia uma estrela dos anos dourados do cinema
americano.
Não me lembro bem o que comi, mas era bom, ainda se
sente o sabor cuidado de uma cozinha que não deslumbra mas entranha, das torres
gémeas que espumavam cerveja forte, e que serviam de moldura ao nu esbelto em
fundo de verdes, resguardado atrás da porta de entrada de frente para a cara
sorridente da atriz.
E hoje apostaria ter ouvido bossa nova.
Com seria capaz de jurar que o cozinheiro, barman e
marido era afinal também pintor e a morena que servia às mesas era a mulher,
sorria em todas as línguas e era modelo.
Lá fora, o 71 corria sobre os carris molhados e
furava, muito esporadicamente, as nuvens escuras de uma planície que não se
poupa ao inverno, hesitando entre a imponência barroca do palácio de Belvedere
e o construtivismo soviético do monumento aos soldados mortos na grande guerra.
Ambos donos do restaurante, uma certeza adquirida
pela curiosidade de quem renasceu naquele dia de inverno de ossos encharcados, com
o Sol anunciado das quatro da tarde.
Há interiores assim, mesmo na Viena imperial.
Lugares onde os seus habitantes se aconchegam do passado altivo e da fria
pedra trabalhada pela história.
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