Naquela manhã de Sol tímido e ventos circulares,
havia sinais de uma vizinhança comprometida com o local e hábitos repetitivos
que atravessavam as ruas do bairro.
No café da esquina, impressiona o espaço vazio das
manhãs precoces, um lugar de alimentação asséptica e madeiras enceradas, sem
cheiros e sem ruídos, mais de seis janelas que procuram absorver os
insuficientes raios de Sol que não chegam a iluminar as penumbras escondidas
debaixo dos parapeitos de madeira e da montra frigorífica.
E, ao fundo, na grande mesa redonda, senta-se um
velho doente que carrega o peso de duas muletas desengonçadas que permanece
silencioso.
Curvado nele mesmo, queimando o tempo que sobra (e
sobra tanto) até, finalmente se arrastar até à porta e atravessar a esquina na
diagonal, assegurando assim que percorre o caminho mais longo para os contornos
do bairro, para lá das ruas pitorescas e das bancas do mercado diário que povoa
a rua de Portobello.
E não se deteve junto à porta 208, um spot famoso de
um filme de gente jovem e fulgurante, nem mesmo quando um casal proveniente de
latitudes exóticas estacou, surpreso, no passeio de quadrados cinzentos e
soltou, em uníssono, um grito de emoção incontida.
Tão estridente que assustaria a rua, mas não o velho
curvado, desengonçado pelas muletas que o arrastavam, passeio fora, até
desaparecer, sem que ninguém tenha percebido por onde.
Na paragem do 70, um vulto sobe sem dificuldade para
o autocarro e, sem pressas, convence o motorista a deixá-lo entrar.
Sem esforço e sem pressa como se o tempo estivesse
parado, como se o mundo tivesse deixado de girar sobre si próprio.
Lá dentro, restabelece-se o movimento e os seus
gestos revelam uma conversa desconexa e sem destino. Não sobram dúvidas, para
quem o observa de fora das janelas, que os passageiros não parecem entender
qual o seu lugar na conversa.
Baixam a cabeça e envergonham o pescoço. O frio ajuda
a esconder as suas expressões nos cachecóis e as mãos nos bolsos.
O vulto não se conforma na sua misticidade, na
ausência de género predominante e no seu estatuto itinerante, e fala consigo
próprio, perante a vergonha dos passageiros que viajam sós, mas que vivem nas
suas próprias casas e se sentem parte de uma vizinhança habitual.
Ele também se sente, é por ali que circula enquanto a
noite não regressa.
E depois, o narrador pergunta mas ele não responde
porque eu não sou dali, depois, ninguém sabe.
Donde vem, para onde vai e quando voltará a
atravessar-se no seu caminho, no autocarro, no pub ou no supermercado
E enquanto o 70 curvava à esquerda, sentindo que lhe
faltava um andar para ser um meio de transporte credível, os transeuntes
asseguravam-me que era uma mulher, mendiga e com conversas que incomodam o
bairro. Àquela hora da manhã, um bairro de gente idosa.
7 minutos depois, nós entramos no 7, um autocarro em que
não falta nada, nem os dois andares nem os ruídos metálicos dos cartões de
acesso a acenderem a luz verde do dispositivo amarelo, todos os passageiros
estão regulares, e só depois, as portas se encerram.
E, subitamente, deixei de ser narrador, senti-me em
movimento e envolvido pela indiferença conhecedora dos passageiros que não me
encaravam, porque sabiam que eu não era dali.
Nem a velhinha que ocupava a cadeira, junto ao
corredor, da segunda fila, lado direito, de cabelo muito branco, um olhar
hirto, com uma solenidade, daquelas que só se vê de bandeirinha na mão, nos
desfiles da coroação ou nos casamentos dos príncipes, e que exibia sobre o
peito, e sem pestanejar, um crachá redondo “Free Palestine”.
Nos contornos do bairro, circulavam agora para trás a
uma velocidade variável, conforme o trânsito fluía para a frente, as utopias
dos arquitetos do após guerra, que redesenharam a cidade com um rigor
geométrico e um espírito reformista, suportados na crença humanista do espaço
urbano como o centro da esfera social.
Utopia, porque duas gerações depois, os espaços
comunitários se encontram vazios, plantados de verde e de uma velhice triste e
solitária.
No primeiro andar do 7, entendo que todos os bairros
têm os seus contornos, mas existem tantos bairros que depressa os edifícios
comunitários desaparecem e voltam a aparecer muitos quarteirões mais tarde,
entre as novas modernidades e as ruas vestidas de diversidade étnica.
Entre o 7 e o 70, entre o frio circular e a porta
208, a rua agitou-se por instantes tão breves que não chegaram a criar romaria
nem burburinho.
Mas o suficiente para os carros voltarem a circular
num sentido familiar (para o narrador, bem entendido), para os condutores saírem
dos carros pelo lado errado e para as faces rosadas, de quem se expôs breves
minutos ao Sol, varrerem a rua de uma súbita jovialidade, própria de quem sabe
que a vida ainda pode ser longa.
E o meu olhar, que apenas se tinha detido sobre os
seres que se esforçavam por esgotar o tempo, rebobinou as memórias recentes e
descobriu, a caminho do espaço cerebral que se dedica ao subconsciente, e
descobriu o jovem rosto oriental da empregada de bar que controlava
(diligentemente) a caixa, e o ruivo de barba em crescimento que limpava os
vidros e se equivocava com a ordem em que devia servir o café, numa lógica de pequeno-almoço
meridional.
E eu aproveitei esta onda de otimismo para espreitar
as estrelas do espetáculo que se debruçam sobre a janela, certo que são apenas figuras
pintadas em janelas inexistentes, mas o suficiente para não ultrapassar a ténue
linha que separa a curiosidade do voyeurismo.
E os nimbos e o céu azul empurravam agora as nuvens
negras da manhã precoce.
E, ao ritmo do Sol em crescendo, desvaneciam-se os sinais
de uma vizinhança comprometida com o local e hábitos repetitivos que
atravessavam as ruas do bairro.
Misturavam-se as raízes.
E enquanto me acomodava, no lado contrário do assento
do primeiro andar do 7, sorri sem sobressalto quando me senti ultrapassado por
um Maserati cinzento de matrícula 07.
A diferença estava no zero e na cor.
Distâncias e estado de espírito.
E varreu-se, subitamente, a nostalgia de uma
distância intransponível, que me havia assolado naquela manhã precoce do bairro
de Notting Hill.
A luz do dia sempre ajuda a encurtar as distâncias e
a crescer as raízes para onde houver familiaridade.
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