Os fatos pendurados nas varandas
revelam que o campeonato do mundo de surf esgotou as camas com vista para o
areal
Os ninjas forrados de preto
passeiam as pranchas debaixo do braço, no parque de estacionamento, no alcatrão
e no areal, ziguezagueando como pequenos tubarões em terra firme (sim, há
tubarões pretos na costa), precipitando-se no mar moderadamente ondulado,
tímido e retraído pela impetuosidade da horda e pelo entusiasmo redentor de
centenas de seguidores do Deus das ondas.
Atrás das dunas, a ausência de
vestiário justifica cenas de nudismo informal e descontraído, porque os fatos
estão molhados e os automóveis dão uma falsa sensação de proteção perante
olhares fortuitos, mas involuntários.
Entre o preto e o cor de pele há
resquícios de flower power na frente ocidental, esfolados na Ford Transit de
matrícula britânica que desperta dos buracos de ferrugem, portas abertas de
correr, e a certeza de que conheceu os Beatles, ainda novos, e muitos anos pela
estrada fora.
Mas à medida que rolamos no
asfalto abrasivo em direção à ilha – que tecnicamente é uma península – torna-se
evidente que esta multidão, em forma de fauna, é muito mais difícil de definir
do que se imaginava.
No estacionamento pejado de
caravanas século vinte, a roupa estendida é apenas mais um obstáculo para as
centenas pranchas que entopem as escadas do areal, e que se impacientam perante
uma legião de voyeurs, esses manequins de revista social e roupas de marcas
sonantes e cheiro a maresia.
Estes seguidores sem prancha, tal
como os campeões, exibem-se perante fotógrafos, televisões e multidões.
Ao meu lado, por detrás dos
vidros protetores de um veículo familiar e moderno, uma morena consulta o iPAD com
um jeito profissional e não sorri nos segundos que cruzaram os nossos olhares e
embrenha-se num casulo de quem não está à espera de ninguém. Eu apostava que
ela é namorada de surfista do século vinte e um, cabelo escorrido, fato novo e
prancha a brilhar, nada o género dos dois que se atravessam à frente da grelha
do meu automóvel de luxo (afinal de contas qual é o teu papel?), ressequidos e
desgrenhados de tanto mar, areia e chuveiro de praia sem champô nem amaciador.
Espero um cheiro de profunda
maresia tomada ao vento, mas o cheiro a frango assado é a única memória que o
meu olfato guarda do momento em que abri a porta do veículo.
Animais de vocação universal,
mais apreciados quando assados do que quando vivos, relembram-nos que
dificilmente há peixe neste mar infestado de pranchas e tubarões pretos, apesar
das esforçadas tentativas dos esporádicos pescadores de cana, que vão
petrificando nas rochas salientes e desajeitadas nas baías do Baleal.
Mas no mar cheira a vento, maresia
e imensidão em tarde de maré vazia, que se estende para norte até o horizonte
se fechar em persianas de neblina, impossíveis de perfurar sem camaras de alto
zoom.
Os pescadores de linha estarão
afinal à pesca de surfistas?
A travessia para a ilha sobre uma
passadeira de cimento, areal a ocidente e a oriente, é a melhor aproximação
possível ao monte St. Michel nacional, com um infundado receio de que as marés
nos persigam e varram o areal, os automóveis, os mirones e os surfistas.
Em dia de campeonato mundial de
surf não há ondas nem marés indomáveis, mas o ambiente na falsa ilha mantém o
glamour bretão de um qualquer início de século vinte, especialmente porque a
estalagem, a casa das marés, é um nome tendencioso, porque desperta memórias
cinéfilas, um casal de estrangeiros com os pés descalços e calças de bainhas arregaçadas
debruçadas na esplanada com vista para a muralha arruinada e para as ermidas
que evocam as reminiscências piscatórias locais (antes da invasão dos tubarões
pretos de pés descalços).
Insistimos em transgredir pelo
sentido proibido atravessado nas traseiras da ilha e o risco compensou.
Pássaros, ondas a sério e uma
visão única de uma das últimas fronteiras do Império: Berlengas e o seu farol
civilizacional, umas milhas a Ocidente do mar, revelam-nos que ainda somos uma
potência marítima, bem para além dos limites e das amarras da mãe-terra.
Enquanto me lambuzava com o vento
batido sobre as ondas, com o repentino orgulho nacionalista e atlântico e com
uma vista sobre o horizonte recortado na rocha, nas verdadeiras ilhas para
estômagos fortes, apercebo-me que se aproxima, saído de um quintal, de uma
marquise de casa térrea e alugada, um suíço continental de brinco na orelha,
chapéu de coco verde na cabeça, calções aos quadrados e prancha rosa choque.
Indiferente à paisagem e às
nossas arrebatadoras vocações!
Malditos!
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