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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Unire under 35

 


As memórias são o espelho de uma alma velha, de quem viveu a circularidade completa e de quem se refugia no longínquo passado por não suportar mais o peso do presente ou, simplesmente, já por ausência. 
Mas não, as novas tendências estéticas e de narrativa da nova arte são remotas e profundas, remetem nos para as tradições da aldeia, e as práticas de manufatura comunitária, para os rituais de passagem, laços de sangue e memórias de família ausente, um pai morto, fragmentado pelo terror das memórias policiais ou de um pai ausente que um filho pretende reconstruir o que poderiam ter sido as suas memórias, encenando o que teriam sido os passos do pai, os seus locais e as suas rotinas, na pele dele e nas suas fardas até conseguir abraça lo de novo num final redentor e feliz.
A coerência estética e  narrativa dos jovens under 35 é imaculada e o resultado é tão fluido e compreensível que apenas possível com um complexo pensamento abstrato.
Mas não deixa de ser perturbador que estes jovens sejam demasiado novos para ter tantas memórias.




Avere Vent’Anni

 




Hoje a trenitalia está em greve e a mobilidade está inquieta.
Não há previsões, ninguém está para explicar, nós seguimos os passos dos autóctones, do binário quatro, para o binário um e finalmente o oito, somos um rebanho de seres obedientes que, hoje, se conformam porque sem mobilidade, esmorece a nossa irreverência e a vontade de partilhar posts de gente feliz. 
Os rostos estão fechados, é possível que todos saibam que a democracia dá trabalho mas na estação central de Bologna não prolifera o espírito militante, antes uma atmosfera  de conformismo suicida que antecede as grandes depressões. 
No binário um, enquanto todos olham para o quadro eletrónico que vomita cancelados, a todos os minutos, como se os comboios, de repente, se desvanecessem, entrassem na plataforma 7b e fossem transportados para outra dimensão 
Enquanto, do alto da sua locomotiva elétrica, orgulhosamente debruçado sobre a janela que vigia a multidão no binário, o maquinista fuma o cigarro da contestação social, e certamente que o número um é importante, uma huelga segundo o único ser humano que, fechado numa barraquinha que devia ser de informações mas não era, que sabia pouco do que se passava fora do seu cubículo e também tinha uma versão muito lata da ibéria. O costume. 
Hoje, na era da automação total, sem bilheteiras nem revisores, com os únicos humanos que restam em huelga, não há comboios e a automação não resolve os imprevistos. 
Com alguma (pouca) vontade dos autóctones - eles até são ruidosos e felizes entre eles o pior mesmo é com os outros, seja no trabalho seja no lazer - mantivemo-nos à tona dos carris, à espera de um milagre, que até aconteceu, muito lento e atrasado
Quando não há imprevistos a eletrônica até funciona. 
Nos outros dias ficamos com saudade do estado social. 
Mas automação significa isenção de contestação e quando a maquinaria avaria e as bilheteiras precisam de ser ressuscitadas, o estado social desperta nervoso. 
Entre Bolonha e Reggio Emilia, enquanto o fura greves leva o rebanho à província, sem forças sequer de se revoltar - afinal de contas os trabalhadores são eles – lembro-me que a Itália não  mudou assim tanto desde os meus 20 anos, altura em que descobria os comboios de Itália, é verdade que com menos diversidade e menos interatividade do que hoje, ,mas a mesma balbúrdia Latina sem governo. 
Porque hoje em Reggio Emilia mora o festival fotografia europea, e o tema este ano é ter vinte anos, ora pois. 
E o regresso ao passado começou logo na realidade.




terça-feira, 27 de maio de 2025

Santo Mungo

 


Bruce chegou cedo a St Georges Square, o novo centro do iluminismo escocês, de forte sotaque da nova britânia porque, em Glasgow, o iluminismo não tem a ver com o significado das ideias, mas com o poder do dinheiro. 
E o Ato da União de 1707 abriu o mundo das colónias britânicas, aos comerciantes de Glasgow que, depressa, tomaram conta da importação e distribuição europeia do tabaco americano. 
Uma enorme riqueza acumulada debaixo do símbolo da caravela sobre a esfera armilar, um mundo que lhes pertencia e que ajudou a construir a nova centralidade de Glasgow. 
Sempre que se aproximava do porto, um barco cheio de tabaco, havia um vigia, na torre do edifício dos merchants que corria a avisar a bolsa de mercadorias, porque na cidade dos comerciantes (e dos artífices) havia o hábito de anunciar no mercat cross, todas as notícias que poderiam interessar ao povo. 
Numa época em que execuções eram também um apreciado entretém do povo. 
Bruce, o historiador informal, o entertainer com um sentido cronológico apreciável, nunca procurou esconder que a verdadeira natureza escocesa é rufia, sardenta, olhados pelos distintos ingleses como um bando de revolucionários que era melhor não conviver com eles, para lá do norte de Inglaterra. 
Até que William Scott reinventou a Escócia através da literatura, e descreveu nos seus livros a verdadeira essência da sua história e da sua personalidade aos snobs do Sul, um herói de Edimburgo que comoveu os ingleses, mas que Glasgow colocou no topo da praça de George, o rei (inglês, claro) que na praça com o seu nome nunca teve direito a estátua, por mau comportamento nas relações internacionais. 
Os indómitos habitantes de Glasgow não perdoaram a George ser uma desgraça enquanto rei guerreiro e, ainda por cima, inglês. 
A velhinha inglesa que nos seguia era uma fã de Walter Scott e sentia um quase orgulho da irreverência de um povo que, em 1986, colocou um pino de trânsito na cabeça da estátua do inglês Wellington, para variar um inglês bom guerreiro, mas inglês, apesar de tudo. 
Passados dez mil libras de custos camarários para retirar o pino que sempre voltava à cabeça do almirante, o poder local aceitou a ideia de que o inglês passava a ter um capacete, para a eternidade. 
Belicosos escoceses 
Só o santo Mungo parece ser consensual porque fundou Glasgow muito antes de existir um país chamado Escócia, um humilde cristão oriundo de um reino governado pelos vikings, que construiu a primeira catedral da cidade e pregou a fé durante toda a vida, chamando os crentes para a igreja com um sino oferecido pelo Papa, um homem a quem são atribuídos quatro milagres, uma vantagem mínima, mas suficiente, para ser santo. 
Mas o artista de rua que o pintou na parede que vigiava a porta principal da catedral, teve uma visão contemporânea do santo Mungo, um homem bom que se despojava dos rituais e da riqueza dos homens para interiorizar todo o sofrimento do mundo, encarnado num velho sem abrigo. 
Perante a indiferença dos transeuntes, o artista abusou da sorte é escreveu na parede do parque de estacionamento "não estacionar ou amaldiçoaremos o teu carro", entre lendas, histórias de fadas e de monstros, a ameaça de maldição espelha a verdadeira alma do highlander. 
Pelo menos, segundo a insuspeita opinião da velhinha inglesa que nos seguia. 
Mais uma alma capturada pela visão romântica de Walter Scott!



quinta-feira, 22 de maio de 2025

Os gigantes das terras altas

 


A Escócia era povoada por uma raça de gigantes que, como é óbvio, gigantes pacíficos que tinham ovelhas gigantes
Mas eles sabiam que o seu tempo estava a chegar ao fim. Então eles decidiram que iam dormir 10,000 anos e pediram à humanidade que tomasse conta das ovelhas, enquanto eles dormiam
Mas como eles não confiavam totalmente na natureza humana, de forma sensata, a cada 1,000 anos um dos nossos gigantes irá abrir os olhos e, se verificar que as suas ovelhas não estão bem e a prosperar, então acordarmos do nosso sono e uma terrível vingança irá desabar sobre vocês.
Agora, essas montanhas que vos cercam são todas gigantes adormecidos e, para prevenir a ira dos gigantes, o povo dos vales pintou todas as suas casas de branco.
Os gigantes olham para os vales e vêm as manchas brancas no Vale e julgam, quem sabe erradamente, que as suas ovelhas estão bem e prósperas e, assim, poupam a humanidade de uma terrível vingança. "
A Norte de Stirling moram as Terras Altas, as montanhas que não são suficientemente altas para reclamar a alma dos vivos, mas o suficiente para manter as lendas e os feitiços em baixa temperatura.
Mas os povos das Terras Altas não conseguem dissociar as suas montanhas dos seus lagos, por assim dizer, e a altura das montanhas acumula com a profundidade dos lagos, com os milhões de metros cúbicos de gelo que foi necessária derreter, para encher as milhares de superfícies de água fresca, sem entornar, em sintonia quase perfeita com o mar do norte, com o qual partilha os excessos de água e as lendas da terra.
A terra deles até tem boa aparência, mas, o que a torna arrebatadora para os visitantes, é a carga mitológica que cada pixel que a paisagem transporta, uma neblina que fixa os vales nas nuvens baixas que escondem os cumes dos montes e lhes tolhem a altura.
(Claro que o Highlander te dirá que as montanhas da Escócia chegam ao céu, as nuvens é que não deixam ver)
E eles afirmarão também que as montanhas são gigantes adormecidos e, portanto são seres vivos e todas as histórias que possam contar serão sempre muito mais do que uma mera lenda, até porque os gigantes dormem e não julgam relevante interromper o sono para corrigir o entusiamo dos humanos, desde que eles tratem das suas ovelhas de forma decente.
A Noroeste de Stirling vive uma estirpe de descendentes de vikings do mar, dos homens grandes da terra, dos brigões que se tornaram senhores feudais, empunhando a espada e declarando a guerra e dos outros, que lhe rendiam vassalagem.
E porque esta estirpe de homens bravos e pouco dados ao convívio pacífico, foram extintos em nome dos compromissos impostos pela civilização – quase sempre, aliás, com uma violência extrema – as suas almas perdidas continuam a vaguear entre as montanhas, ao ritmo da instabilidade do clima, assombrando a civilização para garantir a subsistência dos seus filhos vivos através dos poderes especiais que juram emanar deste local.
(Há dias que adormecem sobre os montes e escondem-se nas nuvens baixas, há outros em que se afundam nos lagos e espreitam à superfície devidamente encarnados no mito dos monstros do lago)
Hoje, os gigantes estavam particularmente tranquilos e não acordaram, apesar do imenso ruído da humanidade!
E a humanidade agradeceu.




domingo, 18 de maio de 2025

William de Stirling

 


Combateu os ingleses e venceu-os na batalha de Stirling, numa altura em que os diversos pretendentes ao trono disputavam um vazio de descendência na monarquia escocesa. 
 Braveheart foi imortalizado no cinema e Mel Gibson representa o herói improvável, o filho de um cavaleiro que derrota os ingleses em defesa da pátria mas que perde uma batalha posterior no ano seguinte e é executado pelos ingleses em 1305, demonstrando que uma liderança heróica sem estatuto social, não era suficiente para defender uma irreverência nacionalista.
Há uma espécie de vertigem revolucionária que emerge da alma escocesa , de tempos a tempos, da profundidade glaciar dos lagos das terras altas, não é apenas mais uma visão do monstro de Loch Ness, que é o mesmo Nessie, mas o dos dias escuros e chuvosos. 
No castelo de Stirling viveram-se provavelmente algumas das batalhas e dos cercos mais épicos da sua história intermitente, e foi testemunha de grandes dramas da história e de cenas de violência em que o vilão nem sempre era o óbvio opositor do monarca vigente. 
Dr Jekil e Mr Hyde, as contradições de um povo que pode demonstrar grande paixão especialmente quando se fala de religião ou realeza
A verdadeira casa de um povo de  personalidade bipolar, exibe com orgulho nas paredes do palácio construído pelos Stuart’ dentro do castelo, um unicórnio pintado no gigante tapete do salão do rei, o símbolo nacional que é tão real como os diversos monstros que habitam o fundo dos seus magníficos lagos. 
E eles sabem que o unicórnio é o único animal capaz de derrotar o altivo leão inglês. 
Pelo menos, quando estes se encontram do lado de fora da muralha, o que também nunca foi óbvio nas dezasseis vezes que este castelo foi situado.




domingo, 11 de maio de 2025

Os mágicos do iluminismo

 


A milha real é a história da Escócia esculpida na pedra vulcânica, tão solene e séria que, em momento algum, nos permite duvidar que as bruxas, os mágicos e os feiticeiros também são personagens da história das terras altas, uma excentricidade que nenhum outro pedaço de mundo pode reivindicar. 
Também não deixa de ser apenas uma rua que se acomoda no comprido planalto que liga o castelo medieval ao futurista parlamento da nação, 
Mas não é apenas uma rua, é um elogio de basalto e orgulho aos símbolos do iluminismo escocês, o século de todas as excentricidades e dos grandes pensadores como Hume e Smith, enquanto a nova monarquia constitucional destruía os Jacobitas, os últimos vestígios das famílias feudais das terras altas, os heróis romanceados de herança dos povos da Escócia. Afinal de contas, uma raça de dinossauros que precisavam de ser extintos, em prol do triunfo das reformas.
Mas sempre que as corujas (ou seriam os mochos?) se atrevem a voar, descendo a Victoria Street, sobre as suas fachadas berrantes e nas costas dos transeuntes que acreditam que a magia é um estado de crença maior e que, basta respirar o ar de quem imaginou esta terra despojada de tempo, para esquecermos os episódios sangrentos da história da Escócia   e atravessarmos um portal colorido de recordações felizes a bordo do expresso de Hogwarts.
As encostas da milha real são assim, em contraponto da solenidade hiper-realista do planalto, uma terra despojada do tempo, um presente de todas as escolas de magia que se alojam na nossa mente e, nem mesmo o cemitério de Greyfriar, que deveria ser solene por definição, se consegue libertar dos apelidos dos mortais que a autora retirou da linha do tempo e as letras de relevo desenhadas nas lápides que já não se realçam do verde da relva fresca, (certamente por culpa do encardido do tempo) esfumam-se a cada referência involuntária que fazemos ao olho-tonto moody ou à professora das transfigurações e jamais por aquele que não ser nomeado.
Nas encostas da milha real os casais fazem juras de amor eterno e trocam anéis de noivado em troca de memórias de uma magia comum, e das promessas de feitiços que a vida comum lhes trará, indiferentes aos milhares de artefactos expostas nas montras, que todos garantiam serem os genuínos e certificados pela saga, porque no mundo do fantástico não há interpretações definitivas sobre a veracidade dos factos.
Entre o mocho de olhos esbugalhados que voava sobre o Castelo (afinal era mesmo um mocho!), os belicosos Jacobinos desterrados para os castelos em ruinas das terras altas, e a posse petrificada de Adam Smith a guardar as memórias da milha dourada, escolhi a mão invisível e as vantagens do comércio internacional, uma verdade, afinal, que já tem três séculos e moldou a maior parte da nossa vida e das nossas escolhas.
Podia ter escolhido o Valdemor ou o Highlander, mas eu sempre preferi os finais felizes.