Na avenida principal de Tashkurgen rareavam os
transeuntes no fim da tarde que se iria eternizar porque a noite chega sempre
muito tarde, não porque se viva a 3,800 m de altitude, nem por ser Verão junto
do Pólo Norte, mas simplesmente porque, nas fronteiras ocidentais da China, o
tempo vive sempre adiantado em relação à luz, esteja o dia a nascer ou a
morrer.
Entre lojas e oficinas de ofícios tão variados como é
esperado em qualquer loja chinesa de pequena localidade de fronteira,
sobressaia a falta de luz e a insuficiência de modernidade, garantiam-se as
necessidades básicas, gente metida consigo mesmo e, a laivos, até parecia que por
ali tinha passado uma feira, mas era difícil imaginar de onde viriam as
pessoas, do planalto deserto ou das montanhas que fechavam a cidade em direção
a um corredor que nos impele a partir, se as fronteiras estiverem abertas.
A aparição da menina Tang, uma nacionalidade e uma
soberania indiscutíveis, ela não pertencia a este lugar, provinha da mãe china,
falava inglês na perfeição e a sua loja de bolos era luminosa, moderna e
resplandecente, a única luz artificial que iluminava para além do essencial, havia
mesmo uma auréola de luxo que envolvia os movimentos, os gestos, a vivacidade e
os bolos de creme coloridos, cuidadosamente expostos em vitrines com luz e
frio.
Rodeada de locais obscuros, ela construiu as pontes
para a compreensão do nosso jantar, que nem o cheiro a couves cozidas
esmoreceu.
E a menina Tang despediu-se sem tempo para lhe
perguntar qual seria o seu verdadeiro destino nem reunir consenso sobre qual a
sua verdadeira origem, com a certeza, porém, de que aquele povo não iria jamais
comprar os seus bolos.
Neste lugar em que o tempo bem poderia ter a essência
de um universo paralelo, em que a cronologia se confunde com a relevância dos
personagens e a ousadia das lendas, a menina Tang bem podia ser uma
reencarnação contemporânea da mãe do Rei de Qiepantuo, um homem superior e
honesto, com uma aparência grandiosa e serena, uma mente vigorosa e um apetite
pelo conhecimento, que se dizia ser filho de uma princesa Han e do Deus Sol.
Ou, na capital do Reino Pamir, a menina Tang bem podia
ser a própria princesa Han que o Rei da Pérsia tinha tomado como noiva que, a
meio caminho entre a China e o Ocidente, tinha ficado retida na Torre de Pedra
e que, apesar de encarcerada numa montanha isolada guardada dia e noite,
haveria de carregar um filho nos braços.
Um filho do Deus Sol, que a tinha visitado todos os
dias ao meio-dia, assegurava um dos criados que a tinha guardado meses em
cativeiro.
Verdade que a História nunca mais referiu a princesa
Han, mas apenas os feitos do Rei.
Envolto pelas entranhas do mundo, não há lugar mais
central que Tashkurgent no encontro entre os dois mundos, e por isso faz parte
dos lugares inóspitos cuja função principal é dar luz às civilizações antípodas,
uma espécie de lugar mãe, fecundada por crentes, deuses, aventureiros e
renegados e cuja única função é espalhar o esplendor das civilizações através
da miscigenação das raças e culturas.
E, depois, morrer!
Um daqueles lugares que é fecundado e logo morre, para
permitir que os outros vivam e prosperem, mas que volta a renascer sempre que a
natureza humana se agita e sai da letargia.
É um lugar sempre efémero, mas de natureza eterna
Por isso todos acreditámos que era a princesa Han que
emergia na rua escura e solitária entre uma população que o militar chinês
Xuanzang descrevia como não tendo regras nem propriedade, com uma aparência
vulgar e revoltante.
De novo renascida, agora que a natureza humana se
agita de novo, ou talvez apenas um fantasma, que vagueia entre os descendentes
esquecidos de seu filho, porque os vivos nunca a deixaram partir.
Mas não tivemos tempo de lhe perguntar porque ela se
desvaneceu na escuridão e a única prova de que provavelmente ela teria mesmo
existido é a loja de bolos, que permanecia iluminada e reluzente, mas, da
princesa, nem mais um vislumbre.
Verdade que a História nunca mais referiu a princesa
Han, mas apenas os feitos do Rei.
E o Rei permanece vivo, no esplendor da grande praça
redonda, centrada por um obelisco, sobrevoado por uma águia real que
transportava os cumes brancos das montanhas para o novo centro, e jorrava cor e
som de dentro do novo palácio real, construído na nova modernidade de vidro e
de bandeiras vermelhas pintalgadas de estrelas douradas e o crepúsculo eternizava-se
com uma eloquência de quem acredita dominar o universo.
A praça estava vazia mas, como acreditaria Ptolomeu, nos
primórdios da rota da seda um local tão relevante como Tashkurgen não será
relembrado pelos seus habitantes mas sim por quem aqui passa, reina, professa e
exerce o saque como a forma mais convencional de distribuição de riqueza e de
afirmação a quem passa de que as altas
planícies dos Pamir não são uma terra de ninguém.
Um ventre ao dispor do mundo, mas que, de tempos a tempos,
reclama os seus filhos e massacra os seus usurpadores.
No centro da praça reinava a ordem, o híper realismo e
o silêncio, apenas interrompido pelas mensagens, pelas músicas gravadas e a
omnipresença da lei.
A trinta quilómetros de todas as fronteiras, bem nos
confortes dos Himalaias, as avenidas largas eram varridas por correntes de ar
gélido, seria apenas frio ou um calafrio que nos percorria a espinha, não era
afinal este um daqueles momentos em que não era pressuposto haver testemunhos?
Agora mais distante, e no planalto imerso numa imensa
nuvem de ventos e chuva sobrepõem-se os sons dos cascos dos exércitos mongóis,
o caminhar pesado dos monges budistas, os passos leves dos bandidos, dos
espiões, dos aventureiros e dos comerciantes de longas distâncias e histórias
Do alto do castelo em ruínas que desafia a imensidão
do planalto, predominam as sombras da longa dinastia dos Senhores do desfiladeiro
e dos viajantes que procuravam proteção.
E sempre que se dissipava a nuvem de ventos e chuva,
uma luz intensa iluminava as ruínas do castelo
e as sombras do Rei de aparência grandiosa.
A princesa Tang e o Deus Sol fecundavam o Rei da nova ordem!
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