No território uigure o tempo começa sempre duas horas
mais tarde e este condicionalismo geopolítico altera todas as perceções na
chegada, porque o Sol respeita o regime e apaga as sombras, inunda de cor o
depósito de água e de luz os montes brancos que marcam o fim do deserto, mas a
cidade entrega-se aos elementos.
E, por isso, a
chegada a Kashgar faz-se ao ritmo da cidade adormecida, os viajantes
arrastam-se na plataforma, ninguém parecia querer deixar o sono preso nas
carruagens do longo curso, e o sono arrasta-se com as sombras oblíquas que
constroem novas geometrias, propaga-se pelos tapumes da gare encerrada para
obras, pela destruição criativa que povoa os espaços e até os guardas reservam
gentileza e complacência no último portão antes da saída para a rua.
Moderada e certamente perdoada por terem saído do seu
espaço de conforto, sinais de que o progresso é tão sôfrego que se torna
descuidado, neutraliza os guichets eletrónicos e os balcões de atendimento dos
guardiões do templo e da ordem pública e, esporadicamente, até lhes sonega a soberba.
E a sonolência do tempo adiantado em relação às
pessoas é inundada, sem aviso, por uma onda de ásia central, descendentes do
império otomano reincarnados numa horda de taxistas, e alguém notou que não
havia fronteiras na planície, homens de outra estirpe pareciam ter cruzado a
fronteira pelo lado das montanhas, aproveitando as indefinições de fuso horário
e o amanhecer tardio.
Agitam-se como se não houvesse dualidade no tempo, um não
reconhecido pelo regime e outro pela nação que não altera o biorritmo, em prol
do conforto da diversidade religiosa.
Indiferentes à manhã que amanhece tarde porque são
oito da manhã, mas parecem seis e, de facto, para a maioria da população são
mesmo seis, porque as ruas estão desertas e a luz é oblíqua e por isso,
associação retardada, o depósito de água parecia em chamas.
Exceto no parque de estacionamento da gare em ruínas
onde se ouvem os sons do bazar e a nacionalidade uigure se apodera da cidadania
chinesa, na convicção do argumento, no fervor da sobrevivência e na insanidade
da condução, uma fúria que se confunde com o folclore do regateio e com as
imagens e os sons das mil e uma noites que jorram do ecrã do veículo ,
exatamente no local onde esperávamos vislumbrar o taxímetro.
Mas este exército de filhos de Muhammad, montado em
camelos amarelos de onde jorram odaliscas dançantes, avança sobre as avenidas
sem margens como se ainda houvesse memória da última rebelião e houvesse um destino traçado, o de cortar o
acesso dos oásis uigure dos confortes da mãe china.
Mas a falta de resistência e de interesse dos esparsos
transeuntes, engolidos pelo espaço, colocava a insanidade da sua condução
dentro da perspetiva da sua própria faixa de rodagem, não há salvação para os
filhos do Emir de Kashgaria, porque Kashgar não vive mais numa dinastia
enfraquecida nem no vértice do triângulo de três impérios, sedentos do controlo
dos mares do sul.
Cedo pela manhã se entendeu que aqui ainda havia finalmente
um país uigure, mas não havia espaço para equívocos na cidadania, agora que os
russos e os ingleses não estão apenas separados por algumas centenas de quilómetros
de montanhas e desertos, nem tempo para o exercício de competências
negociais dos aventureiros nómadas
No Hotel Semeon, às nove da manhã, dormitava-se
encostado ao balcão da receção, uma trincheira de madeira maciça repleta de
escalas de serviço, papéis por arquivar que disputam o espaço com o pó, e que
se escondem por detrás do quadro dourado dos câmbios de moeda forte , com os
arabescos das prateleiras que expõem peças do imaginário orientalista nas
cornijas arredondadas, lembranças abandonadas por um ideal do oriente concebido
pela mente dos diplomatas ocidentais.
Ao fundo da receção, uma parede verde cobria-se de
camelos esculpidos em prata que caminhavam em caravana ao longo de um cenário
de encantar em que a coerência arquitetónica cedia ao romantismo dos lugares
exóticos, onde os minaretes despontam das montanhas e o deserto invade a
mesquita em socalcos.
Apenas os seis relógios suspensos sobre a montanha, os
minaretes, a mesquita e o deserto nos poderiam colocar no centro da intriga
mundial.
Em jeito de moldura, da esquerda para a direita,
Moscovo, Paris, Tóquio, Pequim, Londres e Novo York, em língua chinesa e
tradução ocidental, todas as horas do mundo moderno.
O primeiro impacto com o átrio do Seman Binguan,
imerso na obscuridade e nas sombras profundas, é de um reencontro com a
familiaridade livresca da mãe de todos os romances de espionagem, vividos em locais exóticos em estado de guerra
latente.
E, por isso, o átrio vazio e pouco iluminado era tão
familiar quanto fora do contexto da Kashgar real, exatamente como imaginávamos
que fossem as reminiscências do grande jogo, a envolvente mais exótica das
tramas diplomáticas da mudança de século, onde os diplomatas viviam e competiam
neste remoto oásis, sonhando com aventuras que nunca iriam viver porque consta
que o torneio das sombras nunca foi uma ameaça real, conspirando e planeando a
queda do adversário, enquanto partilhavam a mesa de jantar e as bebidas no bar,
acompanhados de Porto, cristais e guardanapos de linho.
E quando olhavam para a paisagem redentora, entre a
receção e as horas do mundo, despertava-lhes a vontade de agitar os nómadas indómitos.
No antigo consulado russo reina a paz do santo
sepulcro e os empregados professam os princípios da não ingerência, como se lhes
tivesse sido incumbida a tarefa de preservação das reminiscências de um passado
de verdades dúbias e de teorias da conspiração que ainda ressoam das suas
paredes, nos corredores decorados de cor e de exotismo, nos pátios despidos de
árvores e de verde, tudo submerso em frascos de clorofórmio.
Perturbadora esta visão estrangeira do oásis, que não
resiste a cada nova imersão da cidade real.
E saímos de novo para o país uigure onde perdura uma
visão colorida e cosmopolita da rota da seda, porque, no sangue de Kashgar
circulam a ânsia de trocar e, ao contrário do que temíamos, as competências
negociais dos aventureiros nómadas.
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