Lembro-me bem da vista súbita, na
curva à direita e na sinuosa descida até ao vale.
Lá em baixo, no limiar da dupla
faixa de rodagem da nacional 1, permanecia o mosteiro, tons amarelos num
decampado poeirento que bem poderia representar a vitória triunfal de D. Nuno sobre
os intrometidos espanhóis.
Era uma imagem repetida, um marco
das viagens rodoviárias ao Norte.
O mosteiro solitário, imponente,
orgulhoso e desafiador.
Tal como os primeiros séculos da
afirmação de um novo reino, de poder real e da autonomia de um país.
Tão importante que se afirmava na
solidão da paisagem, como se fosse esta a forma de realçar as suas características
únicas, o esforço despendido na sua construção, ao longo de mais de cento e
cinquenta anos, e uma espécie de grandiosa Ermida em memória da dinastia de
Avis.
Um projeto de legitimação.
Hoje, o mosteiro foi reduzido à
sua própria dimensão, pela intrusiva malha urbana nascida da fama e do proveito
da república.
Desvaneceu-se a auréola exterior e
a singularidade do momento, na mesma proporção em que se partilhava a nossa
memória coletiva com o mundo.
Porém, intocável na sua essência
interior, cruzando a porta principal, virando a sul para a sala do capítulo,
assegurando que o fundador da dinastia indicava o caminho do império ou
atravessando a capela-mor para leste, desafiando os nossos truculentos vizinhos
onde, ainda hoje permanece uma auréola mística de um claustro inacabado,
inundado de um silêncio redentor.
Como se o mosteiro precisasse das
capelas imperfeitas para se completar.
Como se houvesse uma qualquer
conjugação de astros que explicasse a disposição dos claustros e uma abóboda feita
de estrelas.
Lá fora, no antigo terreiro
poeirento, renascia a nova feira medieval, como se não tivesse havido História
depois de D. João I.
Assavam-se borregos ao luar, o David
Carreira desafiava um público fácil e contorcia-se contra o som, um inimigo
muito mais devastador que os espanhóis de Aljubarrota.
D. Duarte sorriu, olhou para D. Leonor
e estendeu-lhe a mão.
E todos percebemos o significado
das capelas imperfeitas.
E, apesar de também entendermos
que os tesouros não podem ficar só para nós, não deixamos de ter saudades
daquela visão intermitente e repetida do majestoso e solitário mosteiro amarelo
que abarcava toda a paisagem e se nos deparava, pelo menos a cem à hora, sempre
que nos preparávamos para ultrapassar um camião de mercadorias, no limiar da
dupla faixa de rodagem da estrada nacional 1.
Eu e o da boa memória.