- Descíamos a viela sempre a
abrir, e os únicos travões que tinhas era o pé na roda. Sempre a abrir, lá para
os lados das antas. Conheces, conheces?
E o personagem debruçava-se sobre
a viela de pedra de calçada, e balançava como se fosse necessário dar enfase à
ideia.
Ou talvez empurrar os ciclistas
tão equipados de travões e de medo de descer que até o enervavam
“De todos os terrenos” – bramia o
primeiro figurino, um reformado jovem das Fontainhas, olhos encovados e um
cabelo grisalho que contava histórias, apesar de encharcado por um banho
tardio, quem sabe se apenas um prolongamento de noites sombrias, de um bairro
que tem várias vidas, tantas quantas as posições do sol e da lua.
Nas sombras da alameda que
espreitava o rio, homens de sotaque e vozeirão muito másculo compravam e
vendiam passarinhos, uns mais à vista em gaiolas vistosas, outros mais
encobertos, espreitando de dentro de sacos de serapilheira, enquanto discutiam
promessas de carreira auspiciosas, todos eles desfilando passados e desafiando
futuros, ligados aos meandros da fama, do futebol, da noite e do trade
Talvez apenas uma impressão
E há os personagens famosos do
café la Fontaine, tasca, bar, casa de fados e outros cantos.
Aqui não moram passarinhos, só os
barmens que não contam histórias, deixam-nos para os outros, os mentirosos que
são famosos mas que nunca puseram os pés no La Fontaine.
Mentirosos, sussurra o empregado,
por detrás do balcão de pedra, entre dentes encardidos e um bigode sem escova
nem presença.
Aqui até o fado é incógnito,
vadio, e não é a malta da casa que o diz, são os azulejos da parede que o
cantam.
Porque a malta da casa apenas
dispensa frases curtas, normalmente entrecortadas com sorrisos desconfiados,
sem final.
“Não, nós não cobramos o gelo mas
você, que costuma beber (o café com gelo) sabe bem que noutros sítios lhe
cobram o gelo”
Sabe bem…e o resto fica por
dizer, enquanto me estende uma colher de galão para mexer o café, o açúcar e o
gelo, alguns minutos depois de fingir que não entendia porque, afinal de
contas, quem é o tipo de gente que pede um café quente para depois lhe despejar
gelo em cima?
Há sempre a dúvida se o
forasteiro vem espiolhar, vem aprender, se se vem perder ou apenas gozar com a
malta, com a minha estatura de baixote, muito provavelmente camuflado por
debaixo de um capachinho oleoso, uma cara levemente tipo bolacha, uma testa
demasiado grande para o bigode e uma fisionomia, encoberta pelo balcão de
pedra, que teria presumivelmente uns quilos a mais.
Eu até jurava que ele coxeava,
mas tinha um olhar (eram de certeza os olhos) que se podia transformar, em
qualquer momento num lançador de punhais (há sempre um personagem submisso em
todos os filmes, mas que se transforma quando uma qualquer campainha toca, num
ser letal, segundos depois dos olhos começarem a faiscar) certeiro como nos
filmes em que forrava as tardes de Domingo, nas cadeiras da última fila,
enquanto controlava as sopeiras e afastava os bandidos de S. Roque.
Afinal de contas, um homem tem de
sobreviver, e as sopeiras não têm bairro.
“Não, esse mentiroso nunca cá
veio cantar”
“Você sabe, que já bebeu essa
coisa noutros lados, está habituado”.
Mas no bairro da passarada, até
as lavadeiras têm Domingo, porque na encosta do Douro as mulheres vão à missa e
porque, entre turistas atrevidas, só os homens de barba por fazer traçam o fino
com uma garrafa de Martini, que nunca se recolhe do balcão de pedra entornada.
“Você sabe”
“Pois é, está na altura de sair”
Enquanto as gaiolas se levantam
com a hora do almoço e as carrinhas brancas sem janelas (não vão os pássaros
voar) levantam ferros, no fundo do terraço, sobrevoando as novas pinturas
murais do bairro antigo, ouve-se uma voz suada que desentope os altifalantes
roufenhos com um punhado de canções populares de arraial de Agosto.
“Peguei na minha gaita e fui
cantar”
E os megafones parecem sobreviver,
muito para além do fim de festa e da ponte do Infante que, algures na época do
cimento para cima do rio, um dia esventrou o bairro, diretamente para a outra
margem.
Ao virar da curva, o comboio apita
debaixo dos nossos pés e enfia-se nas entranhas da terra, por baixo do casario,
fintando o rio que o acompanha às escuras.
E a velha do megafone canta “e
apita o comboio…”
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