Em cada um dos recantos de exposição, bastam uns segundos de alheamento para nos entranharmos nos universos ficcionais que se alinham nas prateleiras improvisadas das caravanas de cultura que percorrem o parque.
Cada momento que conquistamos à multidão, apenas nós e os livros, é uma memória nova, construída por bolsas de silêncio e de recolhimento, que nos cercam da matéria e nos isolam em imaginárias bolas de sabão em argumentos inesperados, personagens esquecidos, feitos heróicos, dogmas recontados, dramas lembrados.
Que despertam as dúvidas sobre a cronologia dos factos e nos permitem desenhar os nossos próprios enredos
A nossa cultura é desenhada por sombras e detalhes, palavras e alinhamentos, símbolos, números e planos recortados
imagens, autores, palavras, milhares de palavras, milhões de letras, citações e títulos sugestivos
Basta que nos deixem esquecer a multidão de gente ruidosa que sobe e desce a alameda num ruidoso auto de fé, enfrentando os cheiros a pipocas e os sons metálicos que anunciam uma comunhão popular entre os centenas de autores consagrados que partilham a sua criatividade na contracapa dos livros autografados e impressionam com a sua dimensão de seres humanos à sombra de um chapéu de sol, numa esplanada que serve livros....
Basta deixarem-nos a sós uns poucos segundos, sem ninguém entre nós e aquela história que desponta da prateleira improvisada...
e logo criaremos bibliotecas de novos universos ficcionais ...
E nem a pobre da animadora que berrava para as crianças distraídas uma assustadora história de crianças e gesticulava, e as crianças continuavam distraídas e só os pais sorriam porque era alta e as tranças espetadas lhe davam uma graça especial, e as crianças continuavam distraídas e ela que falava e gesticulava sempre mais alto até uma criança ameaçar chorar...
voltei-me para as histórias que se lançavam das prateleiras e procurei recuperar o recolhimento das palavras escritas, não sem um breve período de desorientação e imagens desfocadas
Enrosquei-me nas milhões de letras que se moviam em fila na banca, como milhares de formigas que constroem os seus próprios caminhos e que resistiam teimosamente aos ventos de norte que desciam o parque, apaguei as imagens supérfluas e dediquei o resto da tarde a construir novos universos ficcionais com os milhões de letras que nos envolvem.
É que a cultura é mesmo uma coisa séria!
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