Efémero bairro X
Apenas o urinol do centro da
praça não se impressiona com as perspetivas de modernidade que se avizinham
Ou não.
Cochicham os novos ocupantes dos
espaços devolutos que o universo de fábricas abandonadas está
(vendido)
(por vender)
(à venda)
Vinte e cinco
Trinta
Milhões
Tal como o bairro, vagas
promessas, sem métricas muito precisas.
Indiferentes às promessas do
bairro X, os habitantes (tal como o urinol da praça) destilam o calor na
cerveja gelada, recorrem-se dos espaços sem vista, deambulam de sombra em
sombra, enfrentam a arte urbana com um desdém de quem já assistiu ao rio
roubar-lhes o bairro, a indústria sonegar-lhes o orgulho, a encosta traseira
construir-se em torres de um modernismo social de pós-guerra e sugar-lhes os
habitantes, e portanto, o direito de ser bairro e espaço social.
Mais do que desdém, imunidade.
Por isso, neste Domingo à tarde
de calor, os sobreviventes circulam sem precauções nem sobressaltos por esta
zona de fronteira.
No bairro X (que confina com Z, a
nova modernidade a oriente, e a ocidente com um plano diretor municipal confuso
e desorientado) confluem os restos do industrialismo urbano, os novos fenómenos
de irreverência artística, a cerveja artesanal, os últimos camiões TIR, um
porto moribundo e as torres fantasma do terminal de cereais.
“Estás sujo!” – e o companheiro,
de riso tonto e pose infantil, acena com a cabeça e acrescenta eloquência ao
guardador de histórias, o chefe do bairro que antes se dedicava a assustar os incautos
forasteiros que por ali se atreviam a espreitar.
De imperial na mesa e despojos no
prato.
Com a fama do bairro.
Agora, tal como os baleeiros dos
mares profundos e violentos dos Açores, dedica-se ao turismo.
“As fotografias servem para nos
recordarmos” – e outro ria – “por isso estás sujo, e ninguém te bate, limpa-te
lá fora, estamos aqui para ajudar, não é?”
Como as baleias, diria.
Também eles (nós) não nos (a
eles) devolverão o direito ao seu espaço social, eles que pairam no seu efémero
infinito.
Deixa-os sujar
Dá-lhes de beber, até que a voz
lhes doa.
A olhar o rio a M, o Pedro, o Válter,
o José Luís, a Rita, a Leonor e, pelo menos, mais vinte e um e os amigos, deliberam
sem consenso, se a modernidade se faz construindo ou recuperando memórias.
A M insiste em afirmar que o que
tem que ser, tem de ser, se levam os posters para casa é porque apreciam a arte
e, afinal de contas, a criação é de todos.
A M não tem mais de vinte e cinco
anos, mas tem o mesmo olhar para o rio do que o velho corsário do bairro X, do que
as fachadas que derramam as lágrimas do tempo, do que os bairros que elevaram
as colinas a uma modernidade minimalista e do que a industria que alimentou as
colónias.
Aqui, a noção de tempo é como a penúltima
letra do alfabeto, tão efémera quanto infinita.
Transversal entre gerações.
Agradeço ao corsário as sombras
fortes que dão cor ao bairro X, mas ele olha distraidamente para leste fingindo
não perceber que já se constroem trincheiras a dois quarteirões da praça do
urinol público, para lá de Braço de Prata,
O companheiro de riso tonto e
pose infantil, esbraceja para oeste e eu julgo que ele me adotou como a ultima
baleia dos mares ocidentais.
Mas o imediato do corsário nem
deu pela minha partida, apenas saúda o facto de, para oeste, não se vislumbrar
nada de novo.
X de Xabregas, provavelmente a
última fronteira.
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