Sentado nas profundezas do metro...
(abrigo anti aéreo, sala de
espetáculos, melting pot cultural, galeria de arte e design)
...estendi as pernas enregeladas de inverno tardio e as pontas das botas enlameadas pelo pote de
sensações e de chuva, até ao limite permitido pela linha amarela, fixei o meu
olhar embaciado nas paredes cilíndricas , para lá da plataforma e das linhas que nos separam, que
logo me avisaram escrupulosamente, evitando danos maiores:
“Mind the Gap”
A pequena de biquíni amarelo logo
me respondeu “Are you ready for beach?” e logo me deslumbrei (reconheço que sou
um deslumbrado compulsivo pelos sinais da irreverência humana) com a
desconformidade permanente que grassa na grande metrópole insular.
Por ela estar despida na gelada
primavera de Londres.
Pelo amarelo do biquíni, para lá
da linha amarela, periodicamente varrida por dezenas de composições atulhadas
de milhares de transeuntes.
Pela provocação, pelo interdito e
pela inveja.
G. tinha emigrado havia quinze
dias, tão bruscamente que lhe agarrámos as asas da mala.
Logo atravessei o canal da mancha
e aterrei na babilónia europeia.
“This is a kind of boys only
vision and we never mind the gap” e apenas mais uma manifestação da singular
liberdade de escolha que tanto me comove neste antro de civilização ocidental.
Pensámos nós, e tirámos a melhor fotografia
do fim-de-semana.
E voltei muitas vezes, depois de
Abril 2015, e reencontrei as formas de arte contemporânea mais disruptiva e
provocadora, a militância do Ben, o graffiter, o exibicionismo de Mick, a
classe do Muhamud, the Uber Man, o sotaque do O’Brien, the irish in the pub,
Burt, o crítico indómito, os ciclistas nus contornando o Hyde Park, os indianos
frenéticos de Shrodetich, os comerciantes árabes de Marble Arch…
Mas a pequena do biquíni amarelo,
foi envergonhadamente retirada do metro por promover corpos irreais.
E entretanto assassinaram um
jornal satírico em Paris de tiragem limitada, de atitude muito provocadora e,
por vezes, de um bom senso duvidoso, e nós enchemos as ruas para defender (com
óbvia coerência com os nossos princípios civilizacionais de tolerância e
humanismo) o direito à expressão, por mais incómoda que ela possa ser.
Mas a pequena do biquíni amarelo,
foi envergonhadamente retirada do metro por promover corpos irreais.
Porque duzentos e quarenta e três
pessoas se queixaram.
Too young, too undressed, to skin.
Como se a única forma de não
ferir sensibilidades das crianças que não sabem nadar, fosse obrigar toda uma
praia a usar braçadeiras de plástico
E voltei muitas vezes à Babilónia
da Europa.
Não resisto.
Enquanto discutíamos animadamente,
à volta de duas cervejas, a extraordinária exposição “Exibicionismo” que relata
a história fascinante de cinquenta anos de carreira dos Rolling Stones, na
margem sul, esperando que o por do sol invertido aparecesse, entre as nuvens
ameaçadoras do céu de Londres, junto à Tower Bridge, G. antecipava as próximas
eleições para a Câmara de Londres, demonstrando um irresistível (e
politicamente desinteressado, porque os nossos filhos são, por natureza, apolíticos)
apelo pelo candidato trabalhista, uma lufada de ar fresco para a cidade, um
Homem de raízes humildes e de um passado construído com muita integridade e
esforço, uma antítese do insensato tory (palavras dele) que governava a
Babilónia e ameaçava submergir a capital em torres de vidro e guindastes
metálicos, um candidato de origens não inglesas mas que pretendia devolver a cidade
aos seus habitantes.
E o candidato ganhou e prometeu
devolver a cidade aos seus habitantes.
Um discurso de posse
extraordinário do novo mayor, Sadiq Khan.
E eu regressei a casa, com
milhares de imagens novas na minha mente.
Hoje, no dia de solstício de
verão que, numa rara coincidência científica, apenas constatável de setenta em
setenta anos, convive com uma noite de lua cheia, a rapariga do biquíni amarelo
voltou às capas de jornais.
“ Como pai de duas raparigas
adolescentes, fico extremamente preocupado com este tipo de publicidade que
pode rebaixar as pessoas, em particular as mulheres, e fazê-las sentir
envergonhadas dos seus próprios corpos. Já é altura disto acabar”
Entendo a preocupação do pai, mas
não percebi o mayor de Londres
Too young, too undressed, to skin?
O que pensarão os curadores da
Saatchi Gallery que expõem a vida desgregada (e brilhante) dos Rolling Stones
com filmes de pequenas em trajes menores nas festas dos exibicionistas de
Londres?
Antes do mayor ser eleito, depois
de eu e o G termos bebido umas cervejas, termos visitado uma dúzia de
exposições fantásticas e loucas e assistido a uma dezena de concertos espontâneos
nas ruas da cidade, voltámos à mesma estação de metro da menina de biquíni que já tínhamos esquecido e estacámos,
deslumbrados com a nova campanha promocional do Selfridges, chamada Everybody.
(relembro que sou um deslumbrado
compulsivo pelos sinais da irreverência humana)
De um bom gosto tão britânico e tão
disruptiva como a primeira.
“Porque não deixam os criativos
em paz?” – Apeteceu-me perguntar ao G.
Adoro respostas inteligentes, sem
preconceitos nem protótipos definidos por mentes confusas.
Sejam eles quais forem!
Hey Brits de bom gosto e mente
irreverente, durmam bem porque amanhã é dia, e lembrem-se que hoje, dia do
solstício de Verão, verifica-se uma coincidência cientifica, que se repete
apenas de setenta em setenta anos: é noite de lua cheia.
E que a última destas
coincidências ocorreu em 1946.