Apesar de ser Agosto, estava frio.
N. sentia frio, talvez porque sabia que estava em
fuga e, nesta espécie de cidade, fugir, mesmo que fosse uma mera retórica, era
sempre um risco.
Às três da manhã, como a qualquer hora,
acotovelavam-se os seres apressados que caminhavam em círculos, porque só havia
gente naquela grande rua e, de repente, as pessoas desapareciam, depois a
humidade dos parques invadia o resto da urbe e, no fim, restava a terra para
onde ninguém ia, uma espécie de floresta assombrada por espíritos mortos vivos.
Na gare de luz insuficiente, passavam os comboios que
paravam e os que andavam sempre, todos na mesma linha e nos diversos sentidos.
Havia sombras em todos os intervalos de luz, que se
alongavam como num pôr-do-sol que se recusa a ceder à noite, porque é
importante que o dia continue a rolar, a noite é silêncio e a escuridão
torna-nos transparentes.
E os mesmos viajantes que à chegada, sempre
carregados de pertences, história e objetos de culto, hesitam sobre que
carruagem escolher, apenas um desejo de que, depois de atravessar a noite
escura, acordassem em terra firme, com o fresco dos ventos do mar e do norte a
aliviar a claustrofobia da cidade dividida.
Vindo das sombras, de leste e do fundo da gare
aproxima-se um comboio de cores carregadas, tão diferente dos comboios normais,
puro ferro e uma locomotiva que trazia o peso da neve e do gelo, os milhares de
quilómetros percorridos na estepe e uma foice vermelha que resplandecia na
frente como um farol do mundo.
N. abriu a boca e o expresso de Moscovo passou sem
parar com destino a Paris.
Quando finalmente pode partir no seu comboio,
refugiou-se no canto mais longe da janela e, rodeado de uma multidão de gente, adormeceu
de imediato, procurando recuperar depressa o sonho que estava a viver.
A campainha da porta tocou.
- Sim, conheço
as Asas do Desejo de Wim Wenders – A inacessível Cristina, aparecia do outro
lado da ombreira de telefone na mão direita, dois bilhetes de um qualquer
comboio sem destino impresso, igual ao deslumbramento inicial, sedutora de tão
distante, igual aos sonhos destruídos de um poeta inseguro.
- Um anjo não
argumenta!
Quatro anos
depois! Acaso ou destino? N. não sabia e Cristina não lho explicou.
- Hoje os céus
de Berlim estão cheios de asas.
-?
- A partir de
hoje sim! O muro está a cair!
E sem que Pedro
pudesse ou soubesse argumentar que não devemos provocar o destino, que a
verdadeira liberdade é partir, que a conversa do Wenders era apenas retórica
existencialista, e que sem muro deixava de haver inacessível, e tudo era ….,
Cristina, pousou os bilhetes sob os seus olhos e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Carruagem 21! Amanhã de manhã. Partirmos é
sinónimo de chegar, como dois sinais menos que se anulam…
- Berlim não é
uma cidade de amor e encontros
- A revolução é
o laboratório de amores épicos…
-…e
impossíveis!
- Não, se o
mundo hoje mudar para sempre, estaremos definitivamente ligados como siameses à
centralidade…passada e futura!
Incapaz de
fugir, de evocar a timidez genética, a solidão criativa, a indecisão perante os
maus momentos que inevitavelmente se seguem aos bons, Pedro limitou-se a
suspirar:
- As asas do
desejo!
A manhã começava a nascer quando
N. acordou, abraçado a uma companheira do lado, que falava uma língua incompreensível
e parecia tão surpreendida e assustada como ele com aquele enlace, mas ninguém
mais no compartimento parecia importar-se ou reparar com o insólito de dois
seres a separar-se com brusquidão.
N. saltou do compartimento em
fuga, era uma sombra apenas que se agarrava a ele, ou ele a ela?
Cá fora, os transeuntes voltavam
a entrar e sair do comboio, o vento norte entrava na carruagem 21 e o Expresso
aproximava-se rapidamente do porto de Hamburgo.
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