“Posso-lhe entregar uma mensagem
bíblica?”
Pousei-lhe a mão no ombro e
abanei a cabeça:
“Não tenho tempo, ando à procura
das ruínas da sardinha!”
Atónito, o crente recusou a minha
mão, afastou-se assustado de bíblia em riste e assumiu, de forma aliás pouco
cristã, que eu tinha doença contagiosa.
E eu lembrei-me de uma frase
bíblica de um velho e resistente industrial conserveiro de Matosinhos, em
resposta à pergunta de jornalista, intrigado com o facto de manter na família
uma indústria por mais de cento e trinta anos:
“ Deus e vontade divina”
Faz pois todo o sentido, esta nova
invasão de seres bíblicos nas largas avenidas de Matosinhos Sul, especialmente agora
que já não vemos a agitação dos pescadores, as centenas de mulheres operárias vestidas
de branco, de faca em riste na mão direita e marmita na mão esquerda, pela rua
Brito Capelo fora.
A nossa geração tornou-se mais do
género espiritual!
(E as primeiras ruínas que
vislumbro servem de sombras aos novos homens do mar em cuecas, pranchas em vez
de traineiras, risco por risco que seja na rebentação das ondas e com a terra
bem à vista)
E do género desportista!
“ A nossa matéria-prima é muito
sensível porque, neste momento está a nadar e depende das licenças de pesca,
que são cada vez menos”
Pois, mais pranchas e menos
traineiras, falta de peixe mas não de ondas no mar!
Matosinhos Sul é o reflexo das
nossas aspirações em aliviar as difíceis condições de vida da indústria “retro”,
uma legítima vontade de trocar o trabalho de sol a sol pelas amenidades do
desenvolvimento, que prometem tempos livres como recompensa de uma mais alta
produtividade.
“Temos o mesmo que tínhamos, só
que mais concentrado”
Enquanto dura o contraditório, a
frente mar abate os armazéns numa onda de maremoto e erige torres de
apartamentos de vistas largas e com assinatura de arquitetos famosos e a obra
do autarca estende reluzentes pistas vermelhas para ciclistas, que atraem novos
cidadãos residentes com automóveis desportivos que aceleram velozmente sobre
uma passadeira indefesa, lojas de artefactos orientais e lofts, e ginásios em
armazéns industriais, (o definitivo triunfo do género desportista), bares e uma
nova vida noturna, armazéns industriais transformados em habitats do pirata das
caraíbas…
(e quarteirões vazios, cercados
de paredes com janelas para lado nenhum, que são os novos monumentos da
antiguidade industrial)
Quarteirão sim, quarteirão não!
“Já foram cinquenta e quatro, hoje são apenas
quatro”
E nos quarteirões sim, as ruas
transversais respiram de árvores frondosas e (provavelmente) tão centenárias
quanto as indústrias defuntas, arruinadas, ou porque os herdeiros não se
entendem ou os novos empreendedores ainda não digeriram a extensa oferta da
crescente densidade populacional da nova cidade virada para o mar.
A arqueologia, o esquecimento e o
abandono, são a melhor garantia do equilíbrio ecológico.
Prédios, vidro e cimento e
avenidas largas no eixo norte/sul, fachadas em ruínas e árvores frondosas na
longitude este/oeste.
“Hoje, a conserva está na moda;
não é mais um produto de emergência mas uma iguaria gourmet, enquanto houver
peixe português”
Mas são já poucas as mãos
femininas que esfrangalham a sardinha porque “é uma matéria-prima muito
sensível e, por isso, têm de ser trabalhadas pelas mãos das mulheres”
Mais um quarteirão vazio, de
ruínas e grafitis, entre lojas gourmet e de moda exclusiva
E, no fim da alameda, assoma o
moderno elétrico amarelo chamado metro que devolve a rua aos peões.
Mas quem tem saudades da agitação
dos pescadores e das mulheres pela Brito Capelo fora, de fardas brancas e
marmitas?
A vida árdua fica sempre melhor
num museu, mas é difícil medir o impacto das memórias no PIB.
Mas para alimentar o
contraditório convém referir que as exportações de conservas continuam a subir!
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