O arco de ferro forjado que flanqueia a entrada bem podia dar-nos as boas vindas à fábrica de Lisboa com uma exultante exclamação de que o “Trabalho Liberta”, não fossem as sinistras conotações que nos despertam as memórias do desenfreado século vinte.
Assim, este promissor arco que pendura
as ombreiras do portão que nunca se fecha, perde fulgor e significado
histórico, com um simplório e descritivo LX Factory. Falta-lhe a alma
que merece um local de culto!
Tropeçamos na calçada revestida
de irregulares pedras pretas e submergimos neste ambiente underground chic que,
afinal de contas, tem uma vida muito própria em horário laboral.
Entre estruturas corroídas pelo
tempo e pelo abandono de décadas, espreitamos pelas portas abertas e pelas
janelas sem estores e descobrimos um mundo experimental e de cuidado design,
gente que espreita para uma população maioritariamente Apple Lover, artes que
se confundem com ateliers de bricolagem e de atividades de tempos livres, luzes
que são focos e que destacam os detalhes, o branco interior contra o exterior
encardido, triste, escuro e industrial que ninguém ousa retocar.
Por instantes julguei que o arco
de ferro forjado me tinha teletransportado para as luzes frias de um fim de
tarde precoce da Europa do Norte do requinte e das formas funcionais.
Mas não. As travessas esconsas,
pejadas de automóveis não (mal) estacionados estorvam as obras de arte urbana
que escorrem das paredes em tons de pastel e complicam a osmose da
reflexão na arte, a tecnologia e o verde da terceira vaga de Toffler, os grandes
espaços e criação nórdica e recordam-me que estou em Alcântara, entre o rio e a
encosta, cercado de becos e coberto pela ponte.
Mas debaixo da ponte a fábrica
renasce na era pós industrial, incorporando as influências genéticas do bairro
popular que a cerca.
“Alegria no trabalho”. Afinal de
contas, uma atenção mais cuidada revela-nos que, os inspiradores deste espaço,
querem mesmo que ele se torne um local de culto. Não no arco de ferro forjado
mas bem mais alto no depósito de água, entre a fábrica e a ponte.
Alegria no Trabalho. Também tem
conotações, mas tudo tem um preço e um depósito a verter alegria das alturas dá
uma alma especial ao local.
Aventuro-me, “no único edifício
que tem quatro andares, e sobe ao segundo andar e a exposição está nos
corredores”.
Não era no segundo, era no
terceiro. Ou então era no segundo e o prédio só tem três, porque o zero não
conta. Complexidades de índole industrial.
Procuro a única escadaria
disponível. Não tem rececionista, nem segurança, nem caixas do correio, nem
hall de entrada. Apenas alguns cacifos debaixo do segundo lanço de escada. Estamos
num novo conceito, sem mordomias nem preconceitos.
Subo, a medo, as escadas
sombrias, como se estivesse a trespassar espaço restrito e proibido. Cruzo-me
com elevadores industriais de ferro que não funcionam e com artefactos, que eu
diria serem máquinas originais de um qualquer passado.
Espero a qualquer momento ser
barrado por alguém mas ninguém te liga. Meninas de caneca (de latão) de café na
mão, paquetes com grandes embrulhos, rapazes de óculos de aros grossos,
juventude de diversas idades.
E tu sobes, vão de escada em vão
de escada, e entras nos corredores, enormes corredores do comprimento do
edifício de quatro (ou três) andares, e espreitas para dentro das salas, todas
de porta aberta, uma porta e uma claraboia, uma empresa, e ouves vozes que
falam ao telefone numa língua chamada esperanto.
E ninguém te liga, porque não há
segredos nem ameaças que incomodem estes espaços imaculados, sofisticados mas funcionais
e ninguém te pergunta porque rondas por ali porque, se o fazes, deves ter
alguma razão para isso!
Descontraído, informal, redentor
e com vocação universalista
E fui subindo. E fui perdendo a
vergonha. E fui espreitando “ um olho no burro e outro no cigano”, as
fotografias dos premiados coladas na parede, e a porta ao lado aberta, a mesma
Apple, os mesmos rostos concentrados e a arte que emana destes espaços
absolutamente funcionais, que contrasta com os temas de desespero e pobreza, na
parede do lado de fora.
Apenas um tema em comum: “Dar a volta”
é o tema da exposição, tanto dentro de portas como no corredor.
Desço devagar. Começo a
habituar-me à era pós industrial: pouca preocupação com os exteriores e com o impacto
da primeira imagem, concentração total na essência dos interiores!
E ainda me dizem boa-tarde!
Volto para a calçada tortuosa de
pedra gasta e os sons da noite começam a apoderar-se deste lugar numa
metamorfose esperada. Os carros vão abandonando o local e as sombras escapam-se
dos faróis que incidem nos cartazes rasgados, nos grafitis que contrariam o
cinzento e que realçam a luz do fim de tarde.
Na livraria fumegava-se como antigamente.
Não, ainda mais que antigamente porque a malta acendia os cigarros quando
entrava pela porta dentro. A dona fumegava atrás do balcão. As mortalhas
espalhavam-se na mesa de uns estudantes, entre restos de torradas e sebentas
escolares. Um velho pegava num livro e sentava-se na mesa do bar, apenas para
fumar um cigarro.
Afinal de contas, ainda resistem
espaços pré industriais na fábrica de Lisboa.
Saio combalido para a rua, sem
ter conseguido furar o nevoeiro e identificar novos talentos literários e sou
atraiçoado pela bexiga.
Nova descoberta das muito latinas
latrinas fabris, com lavatório de pedra e portas de madeira de fecho debilitado.
Decididamente porco e pré-histórico,
como a transição do dia para a noite.
No largo do Calvário – a praça
mais intermodal da Lisboa pré- Expo - a fauna é mais terrena e o movimento é fervilhante,
pessoas que correm atrás dos autocarros, dos elétricos, miúdos que vem da
escolha, no topo da colina e para lá da ponte, velhotas de bengala que descem á
rua, operários e trabalhadores do comércio que se atropelam nos passeios
demasiado estreitos, num microcosmo de seres que se separam longamente das suas
sombras de princípio de noite.
Este contraste dos dois (quatro)
mundos – o dia e a noite, o Calvário e a modernista fábrica de Lisboa – é fascinante,
para quem o decide olhar, como se fosse a primeira vez.
E paro nas passadeiras, sem as
atravessar, encosto-me às paredes sem cair e olho de baixo para cima, e descubro
que o tabuleiro da ponte já faz parte do bairro, no ruído do metal incessantemente
pisado pelos automóveis que desconhecem de todo a vida cá em baixo, e na
moldura das varandas dos prédios altos que competem entre si por um lugar ao
nível da ponte.
Tomo um café. Vejo passar nas
minhas costas o elétrico amarelo. Imagino a composição. Saio para a rua. Fumo
um cigarro e espero. Haverá mais 25? Preparo a camara e concebo um final em
grande, como o dos westerns em que o herói se afasta em direção ao horizonte no
pôr-do-sol. O cigarro acaba e continuo à espera. Encosto-me ao posto de
transformação que faz tic-tac. Será que pode explodir? Finalmente o amarelo
aparece na curva e instala-se no largo do Calvário. Fixo demoradamente o
cruzamento de cócoras e de camara preparada. Sinto-o aproximar-se nas minhas
costas e foco o espaço vazio. O guarda-freio adivinhou que o vou alvejar pelas
costas e para antes do cruzamento. Imagino a expressão maliciosa do
guarda-freio. “Aguenta-te, que vais sofrer”. E eu sofro, já me doem os joelhos.
Finalmente, ouço o tiritar do elétrico em andamento e ele aparece-me no canto
da objetiva. O elétrico geme e o posto de transformação faz tic-tac. E eu
disparo. Uma vez. Duas vezes, e ele para no cruzamento em pose provocante, uns
segundos apenas. E depois parte em direção ao horizonte, atravessando a ponte
sobre o Tejo em terra firme. E eu levanto-me. Sopro os restos de pólvora e fico
muito contente comigo mesmo.
Alcântara vive debaixo da ponte mas
ninguém se parece importar com isso!
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