A crise energética chegou a França que não depende do gás russo, mas tem, aparentemente, dificuldades em equilibrar as cargas na rede e a cidade está fria e escura, apesar de estarmos no Natal.
A manhã cedo da cidade das passagens é um território idoso, onde o bom gosto se refugia do décimo bairro, das saídas de metro encardidas, das ruas molhadas que se lavam das toneladas de lixo que a urbe lhe entrega todas as noites, porque há vida própria nos bairros centrais de Paris, afirmação confirmada pelas lojas de quinquilharias com utilidades penduradas nas portas, os restaurantes étnicos que engolem os cafés de Paris e a juventude, que domina a calçada, na exuberância das cores, dos movimentos, das roupas, da musica que juramos que ouvem por debaixo dos auscultadores, dos penteados e das tatuagens.
Quando entramos nestes túneis intemporais do bom gosto, os sons tornam-se difusos e parece que a cidade ficou lá fora e aqui dentro guardam-se as memórias da Pátria, as heranças culturais da grande França ultramarina, os refúgios de moda vintage e nós, os idosos do regime, flutuamos sobre as nossas memórias e sobre a História com a qual ainda estamos familiarizados, os velhos cá dentro, os novos lá fora e, quando um túnel termina, interrompe-se o silêncio e entra uma súbita corrente de ar de trânsito, de multidões agitadas e, depois, novamente o silêncio redentor.
As passagens de Paris são o purgatório entre a fraternidade da república, a norte, e as indulgências da monarquia ao longo das margens do rio e, mesmo quando a cidade está fria e escura e as passagens são também corredores de vento, as lojas das galerias congelam o tempo e preservam as memórias da cidade que já não existe, um livro de lombada dura e letras douradas, o cheiro a café quente servido sob candelabros de cristal e galerias de homens famosos emoldurados em florestas de madeiras nobres.
Ao fim de uma manhã inteira dentro das passagens de Paris, assomamos com receio à superfície, sentimo-nos encadeados pela agressividade do Sol de Inverno, como se o holocausto se abeirasse de nós.
Nós, e os novos velhos nostálgicos da civilização ocidental a quem até não nos desagradaria que a cidade pudesse ter ficado no passado e que a crise do gás não tivesse chegado este Inverno.
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