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terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Flashback #2 - La ville s'agite

 


KIDZ é um trabalho coletivo que concede carta branca a cinquenta jovens artistas de todo o mundo, sem tema, forma ou enquadramento trata-se, afinal de contas, de uma ordem para criar.
( E, no mesmo espírito e uma décadas mais cedo, os velhos abriam a loja de livros de banda desenhada e questionavam-se se a banda desenhada não seria a forma mais precoce de arte contemporânea)
Na muito improvável Rua dos Francos Burgueses, no Marais que se entregou há muito às multidões amantes do consumo, e que empurrou os mais boémios para os subúrbios, entregaram aos miúdos um palacete resplandecente por fora e totalmente desventrado por dentro, o ambiente ideal para promover a destruição criativa, e eles redecoraram-no contra a tradição do bairro mas como era de borla, os sacos de papel de marcas de várias cores, cuidadosamente bordadas em tons dourados, acotovelavam-se debaixo de botas, calças e outros vestuários que homenageavam o arco-íris, pendurados em cordas de roupa , sim porque a cor parece ser a maior afirmação da juventude rebelde, pouco condescendente para com as formas ou, pelo menos, indiferentes.
Mas, e justiça lhe seja feita, Paris é uma cidade em agitação constante que se empolga com a revolução, com a contradição, com a polémica e, mais do que mais, com o protesto, contra as limitações da sua liberdade de escolha quando lhe impõem, a ela, gerente de uma ourivesaria na Place des Vosges, a obrigação de usar máscara, só porque é inverno e ninguém tem a certeza se o COVID já se tornou endemia ou contra a fome em África, o aumento do preço dos combustíveis, o aumento do custo vida, ou apenas a favor de poder protestar, sem ter de apresentar um motivo.
Na Praça da República, num fim de tarde antes de ser noite no Marais, mas depois de o Sol se pôr sobre o Canal de St. Martin, onde batelões que se empenhavam, tal amantes do Titanic, em abraçar as margens do estreito canal, e onde as margens recolhiam alguns dos boémios expulsos do centro, os criadores alternativos às tendências, a arte de rua com preocupações humanitárias, não só a liberdade para a Ucrânia, mas as 619 pessoas que desapareceram durante o governo fascista da atual primeira-ministra do Bangladesh, mas depois do Sol se pôr na praça, havia espaços de manifestação que exigiam uma nova independência para a Argélia, uma assembleia constituinte para um país latino americano, cuja bandeira desconhecia e é mesmo essa agitação cosmopolita que nos mantém vivos e que mantém viva a cidade.
A cidade estava, de facto, muito agitada para um Domingo de Sol, que outros europeus aproveitariam trazer as famílias ao parque ou comprar as últimas prendas de natal
Mas em Paris, não há desses estrangeiros, e até há, como os miúdos alemães que estudavam no restaurante do bairro onde uma sopa de cebola pode aquecer, até duas almas pelo menos, mas ou agitam ou ficam a ver e em Paris ninguém gosta de ficar a ver.
E o dia começou tranquilo, uma cidade que acorda tarde, nos bairros a norte onde o traçado histórico da cidade já foi substituído por blocos de habitação, todos muito parecidos e quase todos iguais, seis artistas ocupavam um pequeno pavilhão junto ao canal que teria sido certamente a casa dos guardas das comportas, onde, debaixo da cobertura de uma feira de natal, vendiam arte genuína, reconhecível e com elevado sentido estético, aquele que valoriza as formas com alguma soberba contra as cores, a preços de quem ainda não são jovens artistas emergentes.
Mas depois, mais a Sul o canal agita-se com o meio-dia e com a juventude inquieta que passeia os seus cães com a mesma veemência com que licita obras de arte ambíguas e com significados difíceis e, naquele dia, não fui mais capaz de não correr atrás da agitação da urbe, primeiro em processo de comoção pelo reencontro e a reconciliação entre Bresson e Parr, e finalmente, no MEP descobrindo Boris Mikhailov, o mais experimentalista, umas vezes documental, outras conceptual, pintura ou performance, fotógrafo que havia alguma vez presenciado, soviético de nascimento, ucraniano de nacionalidade, fotógrafo para o partido nas horas de trabalho, e fotógrafo erótico e de nus em casa, às escondidas do partido, do patrão e do país, afinal nesses tempos, sempre os mesmos.
Atento aos pontos cardinais da cidade que adora a revolução, sorrimos com a contradição que não deixa de representar, mais a Ocidente, a exposição de Arte Povera no sofisticado Jeau de Paumme, um pavilhão de campo dos muito monárquicos jardins das Tulherias.
Afinal de contas a Arte Povera é baseada nos elementos, construída com materiais comuns, uma espécie de arte reciclada uma forma livre de expressão, comprometida sendo a resposta com as contingências os eventos e o presente.
a resposta europeia à pop art americana.
O que deixa os franceses cheios de orgulho. apesar dos artistas serem predominante italianos.
E, enquanto aquecíamos a alma da noite fria na gastronomia de Borgonha e nos vinhos de Bordéus, na burguesa ilha de Saint Louis, não deixámos de pensar no que seria da cidade se não fosse o seu fascínio pela contradição, polémica e protesto.




domingo, 19 de janeiro de 2025

Flashback #1 - Flanneur

 


A crise energética chegou a França que não depende do gás russo, mas tem, aparentemente, dificuldades em equilibrar as cargas na rede e a cidade está fria e escura, apesar de estarmos no Natal. 
A manhã cedo da cidade das passagens é um território idoso, onde o bom gosto se refugia do décimo bairro, das saídas de metro encardidas, das ruas molhadas que se lavam das toneladas de lixo que a urbe lhe entrega todas as noites, porque há vida própria nos bairros centrais de Paris, afirmação confirmada pelas lojas de quinquilharias com utilidades penduradas nas portas, os restaurantes étnicos que engolem os cafés de Paris e a juventude, que domina a calçada, na exuberância das cores, dos movimentos, das roupas, da musica que juramos que ouvem por debaixo dos auscultadores, dos penteados e das tatuagens.
Quando entramos nestes túneis intemporais do bom gosto, os sons tornam-se difusos e parece que a cidade ficou lá fora e aqui dentro guardam-se as memórias da Pátria, as heranças culturais da grande França ultramarina, os refúgios de moda vintage e nós, os idosos do regime, flutuamos sobre as nossas memórias e sobre a História com a qual ainda estamos familiarizados, os velhos cá dentro, os novos lá fora e, quando um túnel termina,  interrompe-se o silêncio e entra uma súbita corrente de  ar  de trânsito, de multidões agitadas e, depois, novamente o silêncio redentor.
 As passagens de Paris são o purgatório entre a fraternidade da república, a norte, e as indulgências da monarquia ao longo das margens do rio e, mesmo quando a cidade está fria e escura e as passagens são também corredores de vento, as lojas das galerias congelam o tempo e preservam as memórias da cidade que já não existe, um livro de lombada dura e letras douradas, o cheiro a café quente servido sob candelabros de cristal e galerias de homens famosos emoldurados em florestas de madeiras nobres.
Ao fim de uma manhã inteira dentro das passagens de Paris, assomamos com receio à superfície, sentimo-nos encadeados pela agressividade do Sol de Inverno, como se o holocausto se abeirasse de nós.
Nós, e os novos velhos nostálgicos da civilização ocidental a quem até não nos desagradaria que a cidade pudesse ter ficado no passado e que a crise do gás não tivesse chegado este Inverno.