O revisor foi afirmativo, perentório.
Afinal de contas o beliche de cima não é o do meio, e
a ninguém é permitido provocar o destino, a aleatoriedade da procura e os
registos da sua magnífica pasta onde os nossos bilhetes ficam reféns, por troca
de um cartão de liberdade condicional.
E o funcionário certifica-se que cada um dorme no
local certo e que ninguém muda de cama mesmo que seja inevitável que os
melhores lugares não vão lotar, afinal não é a época alta para os chineses.
É a sua magnífica pasta que lhe orienta o quotidiano e
nos tolhe os movimentos
Tudo meticulosamente registado.
O expresso da noite e do dia inteiro não é apenas um
meio de transporte em que todos devem, por razões de ordem pública e de
obsessão pelo detalhe, ser cuidadosamente arrumados por camadas, mas o grande
veículo para que, na órbita da previsibilidade e da resiliência, se realizem os
grandes desígnios da nação.
E o grande desígnio da nação é, ao que é possível pressentir,
do interior do tubo de ensaio de vidro sem legendas e com proteção acústica
dentro do qual viajam todos os estrangeiros, transportar o desenvolvimento
económico do litoral sobrelotado para o interior profundo e para as novas
fronteiras, uma fórmula de harmonizar o acesso das populações ao progresso,
apaziguar sentimentos de exclusão e deslocar chineses para os caminhos da
fronteira oeste.
Afinal de contas a mesma ambição que persegue o
imaginário chinês dos últimos dois mil e quinhentos anos.
Pelo menos.
Às 3,54h da manhã ninguém dormia nesta horda de
soldados que percorriam os corredores sempre que se aproximavam novas chegadas
e, afinal, a pasta também servia para acordar os passageiros, que não têm um
horário definido para dormir, porque a nação é grande, o tempo é curto, a obra
é grande e não existem fusos horários suficientes para garantir um sono noturno
a todos os chineses.
Sem uma palavra, sem um sorriso, sem um olhar
Os guardiões do corredor de Hensi apenas pretendiam
assegurar que a viagem entre os oásis que deram proveito ao extremo oriental da
rota da seda decorreria sem sobressaltos
Oásis, fortalezas e cidades, diferentes perspetivas,
ambições e, especialmente, épocas, mas exatamente nos mesmos lugares, porque
este caminho foi a única escolha com que a natureza presenteou a ambição dos
humanos na história, cercado por montanhas, rios e desertos, à escala de um
continente.
Tinha amanhecido quente e seco nos confortes da porta
ocidental de Xian, onde os locais ofereciam tostas aos viajantes, para aqueles
que partiam na direção do sol poente e que, em breve, se tornariam passado.
Na praça Ximen, ou simplesmente na porta ocidental, já
não existem caravanas de mercadores que partiam em grupo com os seus cavalos de
Fergan, mulas e de camelos bactrianos de duas bossas em direção ao corredor de
Hensi.
O calor do interior profundo refletia as nossas
sombras quase na vertical enquanto atravessávamos a praça preventivamente
liberta de multidões, forrada de pedra branca e rasgada pela modernidade.
Na praça Ximen já não existem caravanas, mas a porta
ocidental é ainda um ponto de partida para o ocidente, de onde partem os
comboios que interligam as cidades
fortaleza, os oásis e as cidades do Noroeste.
Mas na porta ocidental de Xian, cuidadosamente
recortada na muralha que circunda a cidade histórica habita a contenção, os
homens das braçadeiras vermelhas que coordenam o tráfego, os primeiros olhares
que perscrutam as nossas sombras que ocupam de forma generosa os espaços
vazios, sem que nos seja permitida qualquer reciprocidade e nunca entenderemos
se nos olham com curiosidade, desprezo ou indiferença.
Paira no ar uma desconfiança oficial pelos bazares sem
controlo, pela euforia das partidas, pelos heróis que desprezam os perigos, as
convenções e os interesses de estado e que acreditam que o comércio é o único
sobrevivente às utopias dos grandes impérios que, normalmente a história se
encarrega de tornar efémeros.
Dentro da gare, respira-se um esforço de modernidade asséptica,
sem classes nem ajuntamentos, sem ruídos de fundo e de expressões contidas, mas
a caminho do ocidente ainda se distinguem os conectados em rede e os que olham o vazio enquanto
devoram o concentrado de noodles em água a ferver e seguram os seus pertences com
as cordas que os agarram às inevitabilidades resultantes do progresso.
Dentro da gare, apenas os locais sagrados permaneciam
vazios e suspensos no tempo : a sala de espera dos militares, um monumento ao
passado e o salão restaurante que parecia concebido para o futuro que vai
chegar, onde somos surpreendidos pela modernidade dos olhares e dos sorrisos,
uma juventude que se esforça em agradar e serve cafés expresso a três euros com
o mesmo detalhe com que artesãos desenham os papiros no bairro de Shuyuanmen.
Enquanto a nova China desfilava sob os nossos olhos a
um ritmo de comboio expresso e se confirmavam todas as promessas de uma
natureza de elementos que não se conformam e das realizações humanas que não
param de desafiar a natureza, enquanto comemorávamos com circunstância e com
uma pontinha de soberba a travessia do rio amarelo que, naquele local e com
aquela chuva, até nem parecia grande coisa, mas ninguém reconheceu a desilusão,
não nos saía da cabeça uma voz que nos repetia sem cessar que os camelos são
animais domésticos invulgares, carregam enormes cargas no seu dorso, correm rapidamente
sobre as areias movediças do deserto, demonstram coragem nos lugares perigosos
e tem um secreto e subtil conhecimento das
molas, como amortecedores dos caminhos difíceis.
Entre os cavalos de fergan, mercadores sem nome,
distintos empreendedores, dinastias guerreiras e os invasores das estepes
ocidentais, estes eram os verdadeiros heróis da rota oeste
Os camelos de duas bossas bactrianos
Sem chapas na lapela, porque o que interessa é o
resultado do trabalho comum.
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