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domingo, 4 de agosto de 2019

SILK ROAD #2 – Talvez haja razões para os chineses desconfiarem dos estrangeiros



O que não os impede de adotarem entusiasticamente as suas modas

A tarde já se prolongava para além dos limites do fuso horário e, afundados entre artefactos de autenticidade duvidosa, mas de origem confirmada, enfrentávamos as cores penduradas nas ombreiras das lojas atulhadas de lugares comuns com a triunfal certeza de que tínhamos encontrado a fonte do elixir.
Era uma imagem tão familiar que apelava à nossa insensibilidade, mas descobrir a mãe de todas as lojas chinesas do mundo, o molde original de todos os templos da contrafação, deixou-nos um arrepio da espinha, se bem que disfarçado de sorrisos de indiferença e até de desdenho.
Sem aviso, e ao dobrar de uma esquina fomos impelidos para o interior de uma espécie de jardim das delícias, a quem P assegurava tratar-se de uma mesquita, mas era apenas um lugar de silêncio onde os miúdos jogavam à bola e aprendiam a equilibrar-se numa bicicleta e os velhos partilhavam olhares e tranquilidade debaixo de telheiros, onde os pátios se sucediam, separados por portais que ostentavam telas de fundo verde e letras brancas, “Full Salam to all Muslims in the world” e o P continuava a assegurar que o bilhete pago à entrada concedia o direito a uma experiência mística, mas faltava-lhe o fervor e sobrava a serenidade, sombras que se arrastavam pelas galerias do pagode em direção ao templo, um espaço aberto que nos transportava para Meca, como se a fé fosse um chamamento que nasce do interior de cada um.
Sem cúpulas nem portas, sem gritos cantados ou murmúrios de lamento, despojado de véus ou fervor ideológico.
Reinava a Pax Huan.
Apesar do nosso indisfarçável (mas comedido) desapontamento, foi o nosso primeiro encontro com a certeza de que existe uma outra perspetiva no oriente extremo.
Se nos fosse permitido rebobinar o filme, e a história recomeçasse apenas no dia dois, sem os efeitos da mudança de mais de 120º de longitude em direção a leste, da privação do acesso às redes sociais e da constatação que, em menos de vinte horas nos havíamos tornado analfabetos, incapazes de ler, entender e destrinçar as mensagens publicitárias dos sinais de trânsito ou das mensagens do presidente.
E no dia dois, iniciámos o nosso processo de conversão, não desprezando os detalhes, a sopa de noodles ao pequeno almoço, algas cozidas ao almoço e cerveja todo o dia, os pormenores são decisivos na absorção do espírito prático que domina a pax chinesa e que acolhe, ajusta ou persegue as religiões e os hábitos exteriores, de acordo com as necessidades do estado, por razões práticas e necessidades comerciais.
Porque a História contada por fontes independentes parece indiciar que, quando não foi assim, caía uma dinastia, desfazia-se a unidade, perdia-se a soberania e instalava-se o caos
E, por isso mesmo, entendemos que era útil e prudente, interiorizar de forma precoce e sem hesitações, uma outra perspetiva, a deles.
Apesar de Xian ter sido a maior cidade do mundo até 755, altura em que albergava mais de dois milhões de habitantes e, até ao colapso da dinastia Tang, ter sido uma cidade cosmopolita de comércio vibrante.
Apesar de, no período Tang, Xian ter sido tolerante para os estrangeiros, seus hábitos e suas religiões e ter atraído persas, judeus, sogdianos e japoneses, muitos deles refugiados das purgas dos impérios do ocidente. Mas com controlo, desconfiança e escárnio.
E, no final do dia dois, enquanto vagueávamos por entre artesãos, lojas de papiros e cores quentes de final de dia ao longo da Shuyuanmen Ancient Culture Street começámos a não descartar a possibilidade de que podia haver uma outra perspetiva e que, reconstruir, destruindo antes, ou apenas construir noutro lugar e deixar o tempo e as ervas devorar o antigo, não significa, na perspetiva local, não ter história ou desprezá-la.
Significa apenas renová-la
No dia dois, a devorar marisco a mais de dois mil quilômetros do mar por pouco mais de dois euros, adotámos um novo número da sorte chinês e convertemo-nos ao espírito prático e à fé contida do império Huan.
Até porque, quando a única mulher chinesa nos interpelou em Nanchang Alley , entre três pratos de vegetais imersos em especiarias e sabores picantes, uma sopa de noodles e inúmeras garrafas de cerveja, de imediato nos associou, entre gestos e alguns sons, aos carteiristas que a haviam roubado junto ao convento do Carmo.
Enquanto navegava furiosamente no seu telefone móvel, como a pátria china navega sozinha, mas em massa, nas grandes modas do ocidente.

Com o mesmo entusiasmo com que o imperador Xuanzong  se deliciava com as raparigas sogdianas dançantes provenientes de Samarcanda com vestidos púrpura e calças verde damasco, que se balançavam no palco em cima de bolas , apresentadas ao imperador como tributos pelos governantes dos estados da ásia central .



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