O que não os impede de adotarem entusiasticamente as suas modas
A tarde já se prolongava para além dos limites do fuso
horário e, afundados entre artefactos de autenticidade duvidosa, mas de origem confirmada,
enfrentávamos as cores penduradas nas ombreiras das lojas atulhadas de lugares
comuns com a triunfal certeza de que tínhamos encontrado a fonte do elixir.
Era uma imagem tão familiar que apelava à nossa insensibilidade,
mas descobrir a mãe de todas as lojas chinesas do mundo, o molde original de
todos os templos da contrafação, deixou-nos um arrepio da espinha, se bem que
disfarçado de sorrisos de indiferença e até de desdenho.
Sem aviso, e ao dobrar de uma esquina fomos impelidos
para o interior de uma espécie de jardim das delícias, a quem P assegurava
tratar-se de uma mesquita, mas era apenas um lugar de silêncio onde os miúdos
jogavam à bola e aprendiam a equilibrar-se numa bicicleta e os velhos partilhavam
olhares e tranquilidade debaixo de telheiros, onde os pátios se sucediam, separados
por portais que ostentavam telas de fundo verde e letras brancas, “Full Salam to all Muslims in the world” e o P continuava a assegurar que o bilhete pago à entrada
concedia o direito a uma experiência mística, mas faltava-lhe o fervor e
sobrava a serenidade, sombras que se arrastavam pelas galerias do pagode em
direção ao templo, um espaço aberto que nos transportava para Meca, como se a
fé fosse um chamamento que nasce do interior de cada um.
Sem cúpulas nem portas, sem gritos cantados ou
murmúrios de lamento, despojado de véus ou fervor ideológico.
Reinava a Pax Huan.
Apesar do nosso indisfarçável (mas comedido)
desapontamento, foi o nosso primeiro encontro com a certeza de que existe uma
outra perspetiva no oriente extremo.
Se nos fosse permitido rebobinar o filme, e a história
recomeçasse apenas no dia dois, sem os efeitos da mudança de mais de 120º de
longitude em direção a leste, da privação do acesso às redes sociais e da
constatação que, em menos de vinte horas nos havíamos tornado analfabetos, incapazes
de ler, entender e destrinçar as mensagens publicitárias dos sinais de trânsito
ou das mensagens do presidente.
E no dia dois, iniciámos o nosso processo de conversão,
não desprezando os detalhes, a sopa de noodles ao pequeno almoço, algas cozidas
ao almoço e cerveja todo o dia, os pormenores são decisivos na absorção do
espírito prático que domina a pax chinesa e que acolhe, ajusta ou persegue as
religiões e os hábitos exteriores, de acordo com as necessidades do estado, por
razões práticas e necessidades comerciais.
Porque a História contada por fontes independentes parece
indiciar que, quando não foi assim, caía uma dinastia, desfazia-se a unidade,
perdia-se a soberania e instalava-se o caos
E, por isso mesmo, entendemos que era útil e prudente,
interiorizar de forma precoce e sem hesitações, uma outra perspetiva, a deles.
Apesar de Xian ter sido a maior cidade do mundo até
755, altura em que albergava mais de dois milhões de habitantes e, até ao
colapso da dinastia Tang, ter sido uma cidade cosmopolita de comércio vibrante.
Apesar de, no período Tang, Xian ter sido tolerante para os
estrangeiros, seus hábitos e suas religiões e ter atraído persas, judeus, sogdianos
e japoneses, muitos deles refugiados das purgas dos impérios do ocidente. Mas com
controlo, desconfiança e escárnio.
E, no final do dia dois, enquanto vagueávamos por
entre artesãos, lojas de papiros e cores quentes de final de dia ao longo da Shuyuanmen Ancient Culture Street começámos a não descartar a possibilidade de que podia haver uma
outra perspetiva e que, reconstruir, destruindo antes, ou apenas construir
noutro lugar e deixar o tempo e as ervas devorar o antigo, não significa, na
perspetiva local, não ter história ou desprezá-la.
Significa apenas renová-la
No dia dois, a devorar marisco a mais de dois mil
quilômetros do mar por pouco mais de dois euros, adotámos um novo número da
sorte chinês e convertemo-nos ao espírito prático e à fé contida do império
Huan.
Até porque, quando a única mulher chinesa nos
interpelou em Nanchang Alley , entre três pratos de vegetais imersos em
especiarias e sabores picantes, uma sopa de noodles e inúmeras garrafas de cerveja,
de imediato nos associou, entre gestos e alguns sons, aos carteiristas que a
haviam roubado junto ao convento do Carmo.
Enquanto navegava furiosamente no seu telefone móvel, como
a pátria china navega sozinha, mas em massa, nas grandes modas do ocidente.
Com o mesmo entusiasmo com que o imperador Xuanzong se deliciava com as raparigas sogdianas
dançantes provenientes de Samarcanda com vestidos púrpura e calças verde
damasco, que se balançavam no palco em cima de bolas , apresentadas ao
imperador como tributos pelos governantes dos estados da ásia central .
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