(primeiro plano)
A luz é ténue, filtrada pelas
pipas de vinho, pelo calor que se escapa da cozinha queimada pelo tempo, pelas
portadas de carvalho que rangem a cada raio de Sol que se intromete nas
frinchas e no caruncho.
Os velhos arrastam os pratos em
nome da tradição e, lá dentro, não se ouvem vozes enquanto os lugares vazios se
impacientam com a lentidão dos passos e com a solenidade fúnebre dos empregados
de mesa.
A mesma poeira que lhe cobre os
rostos, que lhe eriça as barbas e que confere à garrafeira um subjetivismo quase
romântico.
Na parede do fundo, uma imagem de
Eça lança a incerteza de uma dedicatória irreconhecível sobre o ideário
romântico que povoa a sala de jantar.
Longe dos ruídos do exterior como
se, ao abrigo da tradição, fosse possível parar o mundo.
(plano intermédio)
No museu do neorrealismo
procura-se recordar a história do século vinte à luz dos princípios do realismo
socialista, defendendo uma arte útil, dedicada aos problemas reais da
sociedade.
À parte dos equívocos que
história nos causou, permanece viva a dialética entre forma e conteúdo que
povoou as discussões de um século inquieto, rico em pensamento e sangrento na
ação.
Na rua Alves Redol, já se
dissiparam as poeiras do tempo, mas os visitantes são raros neste mausoléu de modernidade
e arquitetura contemporânea, um legado de um novo século de políticos
ambiciosos e de eleitores desinteressados.
Aproximamo-nos do rio e da linha
férrea, uma espécie de meio-termo entre o romantismo positivista e o neorrealismo,
mas os guardiões do templo partilham do bocejo dos que se atrevem a entrar e
investem em direção aos portefólios fotográficos de difícil leitura que invadem
o local sob o manto protetor da bienal.
Só, no auditório, predisponho-me
a observar um qualquer pedaço do mundo que desfila no ecrã da esquerda para a
direita.
(um mundo plano)
Visto de um comboio a andar, o
mundo parece plano e, numa viagem de vinte minutos com o autor pelos caminhos
do Oriente, sinto a visão a turvar perante a vertigem.
Porque a paisagem se atravessa
depressa demais sob a nossa vista, porque, desta forma, nunca aceita uma
segunda opinião.
Porque mistura visões de grandes
angulares com a imprecisão dos grandes planos de vegetação distorcida
“ A exposição está aqui na
biblioteca, tem um link, uma fotografia e uma série de livros e de separadores,
e de…”
Não alcancei porque, depois de
uma acalorada visita aos bastidores da dialética entre a forma e o conteúdo,
declarei-me vencido pela última sobre a primeira.
Entre a linha férrea e o rio,
entre o jardim e a paisagem vivia toda a cidade de domingo à tarde.
Uma multidão que enfrentava o
resfriado pôr-do-sol, que corria atrás das crianças ou para o comboio que vinha
de Tomar ou simplesmente corria e, sem
surpresa, reparei que os idiomas são, cada vez mais, tão diferentes quanto as
fisionomias
Sem dúvidas sobre o predomínio do
conteúdo sobre a forma, mas sem qualquer ambição de fazer renascer o neorrealismo
ou qualquer outra forma de arte dedicada aos problemas reais da sociedade.
O comboio apitou com destino ao
Oriente e um casal de chineses reencontrou-se sobre a passagem aérea da linha
com um longo abraço, esfuziantes e indecifráveis saudações.
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