… Ou o que faz um Homem para
tentar poupar os remanescentes setenta e cinco euros!
Liverpool Street, duas e
cinquenta da tarde
Enamoro-me pela velhinha que me
chama darling, uma cabeça de alfinete bem descoberta no lado de lá da fronteira
do guichet, que me trata por querido e me devolve dinheiro não gasto no cartão
de transportes que, por acaso, se chama ostra, e fico-me a perguntar porquê.
Mas não de forma obsessiva,
porque a avozinha que me continua a tratar por querido, também é cliente do
banco do meu cartão e sugere-me trocar de contas enquanto me descansa, soltando
uma gargalhada que ecoa no túnel, escadas rolantes abaixo, do metropolitano da
babilónia central.
Sim, querido nós devolvemos-te o
dinheiro, nove libras certinhas vezes dois, para o teu, para o nosso banco,
quarenta e oito horas, e assina aí, duas vezes, dois papéis, e não é preciso a
morada, basta o país, que é para lá que voa a caução que pagaste e as libras
que carregaste, um troco certinho, um exemplo que devia envergonhar os
abusadores da EMEL.
Mas isso, penso eu.
Liverpool Street, três da tarde.
Assusto-me com o bigode de
meia-idade que me espreita do guichet, o outro guichet, acima do chão, no fundo
da gare de comboios, arte nova e a babilónia que vem à superfície.
Vinte e três libras de bilhete de
comboio, para o aeroporto, se faz favor!
Todos os dez minutos, quarenta e
cinco de viagem, argumentos adequados, se o meu susto fosse da espera ou da
demora.
Trinta euros, de Londres à
Azambuja das ilhas britânicas, porque tínhamos vindo de Abrantes e pago apenas
vinte.
Antes de partir para Stanstead já
só faltavam gastar quarenta e cinco euros, para que a indiferença me deixasse
refém dos argumentos de que as novas experiências enriquecem.
Sim, mas este Expresso de Stanstead
era a montanha intrometida no vale do baixo custo: tecnologia, silêncio, uma
casa de banho aerospacial, nada que me fizesse lembrar que o meu destino era
uma aerogare, tão longe que seria provavelmente capaz de servir os escoceses,
antes da independência, bem entendido!
No grande armazém da Azambuja – este
entreposto rodeado de animais de focinho descontraído - renasce das cinzas um
formigueiro de gente, que não se entende de onde chegou.
A tese escocesa perde força à
medida que o burburinho da multidão se torna percetível.
Mas não foi do comboio vazio que
vinha de Liverpool Street, mais propriamente em Londres.
Não fosse o litro de cerveja já
almoçado e teria certamente reparado que, outra vez, tinham transformado um
hangar num terminal entupido de bifes que se rebolavam pelos corredores sem teto
– porque o hangar era sempre o mesmo, por mais curvas e lojas francas que
torneássemos – em direção aos paraísos baratos do sul da Europa, do sul do
mundo.
Em vez disso, corri apressado e apertado
para o mictório mais próximo, bem no centro do hangar, quase sem teto.
Aliviado, então voltei a ligar-me
à experiência dos animais de focinho contraído, encaminhados obedientemente
entre corredores sem teto, portanto currais.
Portanto, como gado!
Stanstead, o império azul e
amarelo da harpa amarela sobre a cauda azul, onde o low cost se confunde com o
charter, em que o estacionamento das naves é tão anárquico que incomoda pelo
contraste.
Com tanto pasto lá fora, tanto
aperto aqui dentro.
Por isso reforçámos a dose de
cerveja, sempre a cinco libras a meia centena de centilitros, e se fizéssemos
contas à cerveja sorvida, para mais fácil ultrapassar as agruras de um homem
que já se habituou a gostar de mimos, a experiência já me estava a custar
dinheiro, mas este bar era diferente, até tinha amendoins que arredondaram as
contas e enganaram-me o estômago.
É que na volta não me iam enganar
com a história do cartaz com a sandes e a cerveja com o gelo a escorrer pela
fotografia.
Mas os amendoins provocaram danos
colaterais. Por esquecimento ou por confiança – ou talvez apenas pela cerveja –
fomos ficando para o fim, porque afinal de contas o avião não parte mais cedo
para os que embarcam primeiro e, vantagem do check-in precoce, ninguém se iria
sentar no nosso lugar marcado.
Tal como no primeiro, devíamos
ter percebido que mais importante do que medir as malas é correr lesto e chegar
primeiro.
Mas não percebemos!
E lá foram os nossos pertences
para o porão e nós que tínhamos medido as malas e havia seres que, somente porque
denotam um espírito de sobrevivência mais apurado, embarcaram malas que
pareciam tapetes voadores assentes em blocos de argamassa.
E a brigada de moças vestidas de
azul e amarelo, menos rechonchudas que as outras, mais sardentas e sorridentes,
receberam-nos de sotaque em punho, sem dramas porque tinham o porão, e pelos
pecados duns pagam outros, melhor assim do que obrigarem as moças de saia curta
a pendurarem-se nas bagageiras, de cuequinha à mostra e gáudio da multidão.
Mas as pequenas trabalhadoras não
descansaram em todo o voo, porque estes anjos de harpa amarela, menos fortes no
marketing visual, trocaram o orçamento em artes visuais por uma força de vendas
direta, que se bateu de forma heroica nas marchas incessantes pelos corredores
fora.
Felizmente, e ao contrário da
odisseia laranja, eu tinha escapado a uma coxia, e aos permanentes embates
laterais com a coxa esquerda – e respetiva nádega – da chefe de cabine.
Mas o altifalante ainda se ouviu
em terra, os passageiros em falta, que tinham nome e tudo, queiram fazer o
favor de se acusar, porque falharam no controlo do embarque.
Como se um ausente, se pudesse
acusar de coisa alguma. Mas o apelo resultou, porque ninguém apareceu e lá se
perderam três transeuntes de check-in feito, com aquela antecedência necessária
para se conseguir o desconto perfeito.
E o avião partiu.
E a azáfama despertou entre o
pessoal da venda direta.
Uma azáfama bizarra, reconheço,
porque elas mexem-se tanto que o amarelo e o azul começam a misturar-se e, a
dado momento, deixamos de perceber se é a saia que é amarela se a blusa que é
azul, se afinal de contas não estão todas vestidas de verde.
Primeiro, as bebidas frias
Depois, as sandes quentes
E o público, sem mexer a
cabecinha, para não ser contemplado por uma venda forçada pelo sorrisinho
sardento das moças.
Hirtos e firmes.
Depois, as bebidas quentes.
Porque o sucesso não era grande,
ousaram uma estratégia que roça a venda agressiva, puxada ao sentimento.
Pede-se aos senhores passageiros
que contribuam para uma obscura instituição de beneficência – primeiro em
inglês, depois com uma perfeita tradução para português.
Perante a falta de entusiamo
geral, de novo um solene anúncio de que afinal, podiam ganhar um automóvel e
algumas viagens na esvoaçante harpa amarela, procurando escoar as raspadinhas,
apelando ao lado mais ganancioso do público-alvo.
Nem assim as filas do lado
direito viraram a cabeça, com receio de serem apanhados na armadilha.
E, por fim, já península ibérica
adentro, a famosa carripana dos produtos livres de impostos que, por forretice
extrema, nem sequer tinham direito a aparecer na inexistente revista de bordo.
Quando já todos acreditávamos que
o pesadelo tinha terminado, com os cheiros da nossa pequena nação a emergir
entre as nuvens, novo anúncio solene a informar que as casa de banho iriam
encerrar ao público, meia hora antes da aterragem, porque tempo é dinheiro e as
moças de farda amarela e azul se preparavam as pequenas limpezas, certamente
porque no ar não se paga parqueamento, nem horas extraordinárias nem horas de
trabalho temporário de outras moças, igualmente fardadas de amarelo e azul, mas
com umas letras nas costas.
Bravas e valentes moças, que
fazem por merecer o privilégio de passar o dia a andar de avião.
E nós contentes, porque poupámos
duas ou três dezenas de euros e ainda tivemos acesso a esta invulgar
experiência…
… não tivesse sido quebrada a
promessa de ter as malas à porta do avião, única razão pela qual as tínhamos
largado na aerogare da harpa amarela.
Queixem-se, sugeriu o bagageiro
português, encolhendo os ombros e cofiando o bigode desgrenhado, num que se
lixe tão prazenteiro que nos tirou o gozo de uma reclamação escrita.
P.S. E a mala apareceu no tapete,
tão desgrenhada quanto o bagageiro, mas sem danos de maior!