E este era
decisivamente um discurso europeu, de quem nascera em França, de quem já
acreditava que Maomé morrera na cruz, de tanta escola e cultura em França,
terra que o tinha transformado de adolescente em adulto, de quem tinha
ultrapassado as fronteiras dos bairros, estudava na Universidade e se preparava
para invadir o espaço cultural francês, disso nem Stephanie tinha dúvidas.
Mas Ahmed tinha.
- Nascemos em França,
mas não nos sentimos franceses…
- Mas pensas e
expressas-te como cidadão europeu – Stephanie esboçava um protesto, porque essa
conversa de filho indesejado e relação fortuita não lhe parecia discurso de
muçulmano tradicional.
- E não somos tratados
como franceses…
- Mas se nem vocês se
sentem, como esperam que uma nação conservadora e republicana os vejam? – Pedro
não perdia nenhuma oportunidade de provocar o Che, e não era racismo, era
embirração com o personagem.
- E a democracia europeia
não deve assegurar a todos o que ajudaram a construir o ideal da Europa a
igualdade de direitos e, simultaneamente, o direito à diferença? Sobretudo
aqueles que se enterraram nas fundações, que se misturaram com o cimento da
construção europeia!
E não
nos podem interpretar mal quando, de tempos a tempos, sentimos o apelo do bom
selvagem, a vontade de regresso ás origens que não conhecemos, mas que os
nossos pais nos contaram, e estas ânsias, para vocês surpreendentes, coincidem
com os súbitos desvios da vossa (nossa) democracia à direita profunda, tão
bruscos quanto igualmente surpreendentes, multiplicação de bandeiras tricolores
em todos os edifícios vagamente públicos, ridícula confusão de identidade com
nacionalidade.
Pedro calou-se e
reconheceu a derrota. O tipo era consistente.
E Ahmed, embalado pelo
encanto dos seus próprios argumentos, e pelo enlevo demonstrado pelos ouvintes,
sim, todos o cercavam enquanto desciam a escadaria do jardim, Sacré Coeur atrás
e atenta no monte, Pigalle em baixo provocante e certamente indecente,
explicava-lhes os sacrifícios dos pais, o racismo no seu mais puro quotidiano,
o grito de afirmação das manifestações de 84,a afirmação da cultura do
subúrbio, daquela vontade que apenas a juventude conhece, afirmação ou
desterro!
- E existem milhares
de desintegrados que vagueiam pelas estações de comboios à procura do que nunca
encontram, ilegais e que escorraçados se refugiam nos bairros e os
destabilizam, com a sua raiva – Joseph, parisiense, frequentador da noite de Monmartre
e Pigalle por vocação e conforto, sem quaisquer convicções específicas, apenas
pela musicalidade e pela estética dos bares, de Brel, das discussões pela noite
fora, ele parisiense também tinha direito a opinião, e exprimia-o.
Enquanto Ahmed anuía,
Michélle e Pedro sorriam, embalados um pelo outro, enquanto que, por exclusão,
Petra e Giovanni caminhavam silenciosos, olhos na lua ou na calçada, ouvidos em
Ahmed ou em ninguém, longe um do outro, vizinhos rodeados de montanhas.
Ninguém percebia como
este grupo se havia criado, talvez geração espontânea, mas este italiano, que
não cantava nem tocava aparentemente nada, que viajava e por aquela noite havia
encalhado, tinha tropeçado numa qualquer saída de emergência e parecia
sentir-se satisfeito por apenas não caminhar sozinho, todos acharam que uma
ambição tão modesta não poderia ferir ninguém e adoptaram-no!
Petra decidira
envolver Giovanni nesta existência de grupo, sorriu-lhe e aceitou a conversa
tímida, apenas geografia de lugares e coreografia de seres, era preciso
desentorpecer as nuvens de desalento que espreitavam as escadarias de
Monmartre.
Pois, a musicalidade
nocturna perdia sonoridade na madrugada do impossível.
Diferenças.
Impossível!
Mas Petra e o amor dos
outros imergiam a Argélia profunda.
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