Reconheço o meu fetiche aberrante
pelas fronteiras.
Posto de controlo de saída, posto
de controlo de entrada, homenzinhos muito compenetrados do seu dever de
guardiões de uma terra qualquer, uniformes diferentes, línguas que se misturam
e, depois de tudo passado, ainda falta a alfândega, os controlos de segurança
e, com um pouco de sorte, os cães que nos farejam os pés e uma revista corporal
profunda.
Tudo isto, não porque mudamos de
mundo geográfico, mas apenas porque os humanos se alimentam de posse, uma
espécie de direitos de autor sob propriedade da natureza, da qual nos
apropriamos recorrendo a uma bandeira, uma língua e um hino
Daí, homenzinhos compenetrados,
portanto!
Portanto quando me aproximo de
uma fronteira começo a sentir aquele bichinho que me corrói a espinha, a que
muitas vezes chamamos de arrepio!
Descontrolado, uma adrenalina de
montanha russa, nos segundos finais da subida que antecede a queda sobre o
vazio.
E, muitas vezes, só há vazio
depois da fronteira.
E quando aterro num local como
Algeciras, a adrenalina passa a ser tão errática que nem me apercebo que há
tipos que se atravessam nas estradas para me empurrarem para estacionamentos
clandestinos, tão longe do barco, que só podia ser mentira.
Mas Algeciras é uma fronteira de
trezentos e sessenta graus (bom, para ser preciso é só de cento e oitenta), com
europeus a imporem um hino, uma bandeira e uma língua em África, com africanos
a povoar o lado de cá das fronteiras da Europa, uns ilhéus – europeus é certo –
a desfraldar uma bandeira, uma moeda, uma língua, um hino e, ainda mais, uma rainha,
num rochedo de terra firme na outra ponta da europa, de onde era pressuposto
viverem, uma fronteira a sul que é fronteira da natureza – ou de Hércules – porque
separa mares e continentes, mas que afinal não é fronteira, apesar de parecer.
Tudo à distância de um só olhar,
quer estejamos no pontão do porto de Algeciras, no barco para Ceuta, em cima do
rochedo ou na marginal de Ceuta
Uma aberração diz J.
Uma fonte de inspiração, pensa N.
Ceuta é a fronteira africana –
começaria por narrar a crónica de N.
O estreito revela a cor azul viva
da sua superfície e no fundo do mar, que se comprime entre placas continentais,
ficam as falhas tectónicas, provavelmente uma obra de Hércules, que ainda não
adivinhava que, interferir com a natureza, teria repercussões geoestratégicas.
Tão inspirado me sentia com o
azul do mar, o cinzento da neblina que pairava sobre as montanhas de África e o
castanho do rochedo que quase não me apercebi que hoje, o deck superior do ferry
para Ceuta ia cheio de polícias e marroquinos clandestinos algemados, prontos
para serem recambiados para Sul.
E o marroquino rico, recém
regressado de Portugal em férias – Vila Nova de Milfontes, imaginem – cantava as
maravilhas de Portugal, paraíso tão diferente do agitado Marrocos onde um
telemóvel à vista, significaria perigo de assalto.
- No teu país (fantástico país)
não passa nada, é um paraíso – recostava-se a estibordo, olhava o mar, e
chupava num cigarro bem enrolado em ervas exóticas.
E em Ceuta, também já houve tempos
em que, nós, os portugueses fomos felizes.
Na geografia como na História, as
fronteiras são mesmo efémeras!
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