A ponte da amizade atravessa a fronteira entre a Bulgária e a Roménia e, conforme os cronistas búlgaros, a terra romena fica na estrada do mal, na rota das invasões que se derramaram, durante séculos sobre a Europa, vindas do Oriente
Entre Ruse na Bulgária e Ghiorgiu na Roménia, o Danúbio tem vistas largas, é um rio que insiste em manter as distâncias, como convém a um rio de respeito e de fronteira, mesmo em época de secas prolongadas nos Balcãs orientais.
Até porque, apesar da ponte pretender celebrar a amizade entre dois povos vizinhos que, por felicidade deles, se encontram hoje do mesmo lado da História, não há química entre vizinhos nem há vestígios de Schengen no interior das fronteiras da Europa, não há agitação mercantil a povoar os espaços comuns nas fronteiras abertas, é uma fronteira de baldios, uma ponte ferrugenta, como os restos abandonados das indústrias obsoletas plantadas ao longo da linha , parecem os baloiços dos quintais da aldeia dos pais, quando os miúdos crescem e abandonam as origens.
Mas às sete e dois da manhã, na estação de Sofia Sever, um subúrbio improvisado pelas obras na estação central, não havia sinais de ambiguidades fronteiriças.
Apenas as profundezas de um destino interior, sem outras ambições que não a dura rotina de bairro.
A noite quase matinal dos arrabaldes de Sever, realçava as sombras e acentuava a incerteza quanto ao nosso meridiano de partida, hoje, porque o alfabeto não é amigável e as portas de alumínio que davam acesso à gare, conferem-lhe uma auréola de apeadeiro pobre, uma realidade crua de gente que afunda a cabeça na penumbra do bar de estação, onde as toalhas de quadrados de plástico vermelho e branco são tão encardidas quanto as rugas carregadas de um povo que aparenta ter um despertar difícil.
Sem vestígios do glamour do expresso do oriente.
O táxi tinha sido silencioso e discreto, o taxista sabia que nos conduzia pelas avenidas de um subúrbio que encarcerou a defunta ruralidade búlgara ao longo de dezenas de anos de fuga da pobreza extrema, em milhares de prédios, que não são altos nem baixos mas são cinzentos, brutalistas e monótonos, especialmente de noite, quando escondem as gentes, e embalados por esta sonoridade antiga e estranhamente tão ocidental que nos empurrava para um lento acordar, e eu tive uma visão de que este som só podia ser um embrião de uma cassete fecundada no ventre de um autorrádio.
Como na noite, feita de madrugada, em que aterrámos em Sófia.
E, neste regresso ao século passado, apenas a palavra chá nos permitiu entrar no mundo deles.
E quando o Sol iluminou os carris com a sua luz oblíqua em direção a nordeste, descobria-nos uma paisagem saída da marcha patriótica de um povo que vestia fardas sempre com um número acima do que o corpo pedia, os chefes da estação ferroviária de mãos escondidas nas mangas do casaco castanho e cabeças enterradas no boné de pala que pretendia irradiar autoridade, os outros sem farda mas também vestidos de tamanhos desmedidos, afinal de contas a roupa à medida de cada um é uma intolerável manifestação de egoísmo liberal e ocidental.
Ao som da marcha “meu país, minha Bulgária” encostamos os narizes à janela embaciada do nosso compartimento, gasto pelo tempo, mas aquecido pelos combustíveis fósseis que, desde sempre alimentaram as democracias populares. (a marcha só tocava dentro da minha cabeça, bem entendido, não havia altifalantes no comboio)
Reconheço que as poucas horas de sono e o amanhecer disruptivo me retiraram discernimento, me confundiram as memórias com os sonhos e a realidade com o imaginário, mas nos quarenta e cinco minutos em que o comboio se quedou, imóvel e silencioso, num apeadeiro da Bulgária central, resultado de uma avaria incompreensível, especialmente quando explicada em carateres cirílicos, em longos debates entre os passageiros na plataforma, eu reli cuidadosamente as palavras do escritor Cláudio Magris no seu livro “Danúbio”, que afirmava ainda nos longínquos anos oitenta do século passado “ os comunistas ocidentais, quando ouvem dizer que alguém – especialmente alguém não inscrito no partido – esteve na Bulgária, apressam-se a mostrar uma comiseração irónica e distante e, sobretudo, uma surpresa maravilhada pelas suas impressões positivas” e tudo me pareceu familiar.
Apesar do amor sem reservas que o povo búlgaro demonstra pelo seu país, sempre que eles ultrapassam as barreiras de linguagem.
É nestas alturas, que se cruzam as realidades paralelas e que nos arriscamos romper a linha do tempo.
Mais tarde, quando o cheiro das sandes de pão duro já nos retirara a vontade de almoçar, e o atraso na chegada do comboio búlgaro a Ruse, se acumulava com o absoluto desinteresse do comboio romeno em partir para Bucareste (e nós nos começámos a convencer que o horário era uma mera abstração, o única utopia que unia os dois povos ) o guarda fronteiriço entrou no comboio romeno ainda em Ruse, a última cidade búlgara – portanto tecnicamente em solo romeno – mas fez questão de me corrigir com uma veemência que me pareceu excessiva, o senhor está na Bulgária, afinal fardas são fardas, apesar de só mais tarde entender que a farda deste guarda continuava avantajada e que as fardas dos romenos assentavam, que nem uma luva, no corpo dos guardas fronteiriços, no revisor e na generalidade do povo romeno.
O comboio romeno é mais moderno mas tão grafitado como o búlgaro, menos aconchegante e muito mais lento que o dos búlgaros, que já tinha começado a perder o passo de trote, no troço que o levava à fronteira, e aqui, a terra de fronteira ainda á uma terra para onde ninguém parece ter interesse em ir, uma desolada planície que não chega a desfocar com a nossa passagem, tão lenta é a nossa marcha , porque para os romenos a Europa é para norte, e para os búlgaros o mar é grego, a sul, estes talvez atingidos pela nostalgia de quando ousaram ser os senhores da macedónia.
Às seis e cinco da tarde, quase um dia depois, o comboio romeno entrou na Gara du Nord, a primeira gare verdadeiramente cosmopolita desde Constantinopla, e ficamos sem saber o que pensar, será o fim da estrada do mal ou o princípio do expresso do oriente, mas na capital da Roménia ninguém atribui crédito à opinião de um cronista búlgaro e o cosmopolita (e pouco escrupuloso) taxista de Bucareste nem queria acreditar que nós vínhamos de Sófia, e como é que é a vida por lá, como se tivéssemos chegado dos confins do Oriente.
Também ele não sabia que os búlgaros tinham entregado ao mundo um novo alfabeto de evangelização e, mais do que isso, tinham aberto um precedente na Igreja de Roma de prosseguir a evangelização nas línguas nativas, substituindo o hermético latim.
"Assim seja", assim se conformam os romenos perante os golpes do destino e os factos incontroláveis