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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A estrada do mal

 


A ponte da amizade atravessa a fronteira entre a Bulgária e a Roménia e, conforme os cronistas búlgaros, a terra romena fica na estrada do mal, na rota das invasões que se derramaram, durante séculos sobre a Europa, vindas do Oriente  
Entre Ruse na Bulgária e Ghiorgiu na Roménia, o Danúbio tem vistas largas, é um rio que insiste em manter as distâncias, como convém a um rio de respeito e de fronteira, mesmo em época de secas prolongadas nos Balcãs orientais.
Até porque, apesar da ponte pretender celebrar a amizade entre dois povos vizinhos que, por felicidade deles, se encontram hoje do mesmo lado da História, não há química entre vizinhos nem há vestígios de Schengen no interior das fronteiras da Europa, não há agitação mercantil a povoar os espaços comuns nas fronteiras abertas, é uma fronteira de baldios, uma ponte ferrugenta, como os restos abandonados das indústrias obsoletas plantadas ao longo da linha , parecem os baloiços dos quintais da aldeia dos pais, quando os miúdos crescem e abandonam as origens.
Mas às sete e dois da manhã, na estação de Sofia Sever, um subúrbio improvisado pelas obras na estação central, não havia sinais de ambiguidades fronteiriças.
Apenas as profundezas de um destino interior, sem outras ambições que não a dura rotina de bairro.
A noite quase matinal dos arrabaldes de Sever, realçava as sombras e acentuava a incerteza quanto ao nosso meridiano de partida, hoje, porque o alfabeto não é amigável e as portas de alumínio que davam acesso à gare, conferem-lhe uma auréola de apeadeiro pobre, uma realidade crua de gente que afunda a cabeça na penumbra do bar de estação, onde as toalhas de quadrados de plástico vermelho e branco são tão encardidas quanto as rugas carregadas de um povo que aparenta ter um despertar difícil.
Sem vestígios do glamour do expresso do oriente.
O táxi tinha sido silencioso e discreto, o taxista sabia que nos conduzia pelas avenidas de um subúrbio que encarcerou a defunta ruralidade búlgara ao longo de dezenas de anos de fuga da pobreza extrema, em milhares de prédios, que não são altos nem baixos mas são cinzentos, brutalistas e monótonos, especialmente de noite, quando escondem as gentes, e embalados por esta sonoridade antiga e estranhamente tão ocidental que nos empurrava para um lento acordar, e eu tive uma visão de  que este som só podia ser um embrião de uma cassete fecundada no ventre de um autorrádio.
Como na noite, feita de madrugada, em que aterrámos em Sófia.
E, neste regresso ao século passado, apenas a palavra chá nos permitiu entrar no mundo deles.
E quando o Sol iluminou os carris com a sua luz oblíqua em direção a nordeste, descobria-nos uma paisagem saída da marcha patriótica de um povo que vestia fardas sempre com um número acima do que o corpo pedia, os chefes da estação ferroviária de mãos escondidas nas mangas do casaco castanho e cabeças enterradas no boné de pala que pretendia irradiar autoridade, os outros sem farda mas também vestidos de tamanhos desmedidos, afinal de contas a roupa à medida de cada um é uma intolerável manifestação de egoísmo liberal e ocidental.
Ao som da marcha “meu país, minha Bulgária” encostamos os narizes à janela embaciada do nosso compartimento, gasto pelo tempo, mas aquecido pelos combustíveis fósseis que, desde sempre alimentaram as democracias populares. (a marcha só tocava dentro da minha cabeça, bem entendido, não havia altifalantes no comboio)
Reconheço que as poucas horas de sono e o amanhecer disruptivo me retiraram discernimento, me confundiram as memórias com os sonhos e a realidade com o imaginário, mas nos quarenta e cinco minutos em que o comboio se quedou, imóvel e silencioso, num apeadeiro da Bulgária central, resultado de uma avaria incompreensível, especialmente quando explicada em carateres cirílicos, em longos debates entre os passageiros na plataforma, eu reli cuidadosamente as palavras do escritor Cláudio Magris no seu livro “Danúbio”, que afirmava ainda nos longínquos anos oitenta do século passado “ os comunistas ocidentais, quando ouvem dizer que alguém – especialmente alguém não inscrito no partido – esteve na Bulgária, apressam-se a mostrar uma comiseração irónica e distante e, sobretudo, uma surpresa maravilhada pelas suas impressões positivas” e tudo me pareceu familiar.
Apesar do amor sem reservas que o povo búlgaro demonstra pelo seu país, sempre que eles ultrapassam as barreiras de linguagem.
É nestas alturas, que se cruzam as realidades paralelas e que nos arriscamos romper a linha do tempo.
Mais tarde, quando o cheiro das sandes de pão duro já nos retirara a vontade de almoçar, e o atraso na chegada do comboio búlgaro a Ruse, se acumulava com o absoluto desinteresse do comboio romeno em partir para Bucareste (e nós nos começámos a convencer que o horário era uma mera abstração, o única utopia que unia os dois povos  ) o guarda fronteiriço entrou no comboio romeno ainda em Ruse, a última cidade búlgara – portanto tecnicamente em solo romeno – mas fez questão de me corrigir com uma veemência que me pareceu excessiva, o senhor está na Bulgária, afinal fardas são fardas, apesar de só mais tarde entender que a farda deste guarda continuava avantajada e que as fardas dos romenos assentavam, que nem uma luva,  no corpo dos guardas fronteiriços, no revisor e na generalidade do povo romeno.
O comboio romeno é mais moderno mas tão grafitado como o búlgaro, menos aconchegante e muito mais lento que o dos búlgaros, que já tinha começado a perder o passo de trote,  no troço que o levava à fronteira, e aqui, a terra de fronteira ainda á uma terra para onde ninguém parece ter interesse em ir, uma desolada planície que não chega a desfocar com a nossa passagem, tão lenta é a nossa marcha , porque para os romenos a Europa é para norte, e para os búlgaros o mar é grego, a sul, estes talvez atingidos pela nostalgia de quando ousaram ser os senhores da macedónia.
Às seis e cinco da tarde, quase um dia depois, o comboio romeno entrou na Gara du Nord, a primeira gare verdadeiramente cosmopolita desde Constantinopla, e ficamos sem saber o que pensar, será o fim da estrada do mal ou o princípio do expresso do oriente, mas na capital da Roménia ninguém atribui crédito à opinião de um cronista búlgaro e o cosmopolita (e pouco escrupuloso) taxista de Bucareste nem queria acreditar que nós vínhamos de Sófia, e como é que é a vida por lá, como se tivéssemos chegado dos confins do Oriente.
Também ele não sabia que os búlgaros tinham entregado ao mundo um novo alfabeto de evangelização e, mais do que isso, tinham aberto um precedente na Igreja de Roma de prosseguir a evangelização nas línguas nativas, substituindo o hermético latim.
"Assim seja", assim se conformam os romenos perante os golpes do destino e os factos incontroláveis




sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

O monstro, a geometria e a gargalhada

 


Na avenida primavera, nos arredores dos símbolos francófonos, a praça Charles de Gaulle e o arco do triunfo, moram os afortunados do novo regime liberal, cento e quarenta anos depois da primeira experiência liberal do país, desta fez abençoada pelas grandes potências do ocidente.
No parque Herastrau, do outro lado da avenida, as esplanadas enchem-se de gente cheirosa e sofisticada, espraiam-se pelas poltronas e pelos bancos de jardim, enquanto os miúdos lançam-se nas trotinetes para cima das paredes de parcours e há bom gosto e vidas despreocupadas que povoam as esquinas que fumegam cappuccinos, cheiram a chocolate quente (ou apenas a chocolate) e muitos miúdos que parecem nascer a quem mudam as fraldas nos intervalos de uma existência dominical burguesa. 
Na primavera da cidade viveu o ditador, mas quinhentos metros antes nasceu, há cinco anos, o museu de arte recente, uma realidade mutante, não fosse a vanguarda um conceito, por definição, sempre ultrapassado. 
Na origem, o piso térreo forrado de vidro contrariava o tijolo negro que cobria a parte superior do edifício, uma imagem do obscurantismo do passado recente e a irreverência do presente espelhado no interior sinuoso de corredores estreitos e salas escondidas entre a noção tradicional de piso. 
Cinco anos passados, a exposição o monstro, a geometria e a gargalhada é premonitória e parte do arcaico, como a forma de tornar visível o sagrado, através de imagens monstruosas e geométricas que se transformam em riso e sarcasmo, um humor negro que é a estratégia de sobrevivência de um povo que vive nesta região geográfica, uma válvula de pressão para a alma que pode tornar a vida, vivida através da gargalhada, muito mais tolerável. 
Segundo as suas próprias palavras.
Mais a sul, na praça da unidade (há uma em todas as cidades e consta que em todas elas foi renomeada), estamos de volta à cidade do povo, há uma multidão que faz fila nos restaurantes de take away e é um dia de celebração das memórias, ramos de flores nas mãos dos rostos que transparecem crença, percebemos que quinze minutos de metro para sul são o tempo que separa a nova elite do mesmo povo que sempre sobrevive às contingências da história. 
"Assim seja", assim se conformam os romenos, perante os golpes do destino e os factos incontroláveis.
Mas a multidão circula em torno do jardim, ninguém se aventura pela avenida da unidade, na direção da praça da constituição, porque preferem ver as sombras, de uma distância segura. 
O palácio do Parlamento faz parte de uma história que preferiam que tivesse acontecido aos outros, mas prevaleceu o bom senso, até porque ninguém mais suporta que se reescreva a história, eliminando as partes incomodas, ou simplesmente as que não se enquadram nas novas visões do passado vistas a partir do presente. 
Nele (no palácio) habitam os novos pilares da democracia, que pagam o essencial dos milhares de quilos de lustres fabricados pelos romenos (numa fábrica construída para o efeito), porque tudo neste palácio é nacional, e depois (pragmatismo de estado) alugam o espaço a todo o tipo de eventos que ajudem a pagar um milhão de euros de utilities por mês. 
(E aceitam sugestões para novas e radicais atividades lúdicas que caibam no espaço) 
E assim não se transformou no maior casino do mundo, promessa do americano que, não é certamente, o melhor amigo da Europa. 
E, enquanto assistíamos a um concerto de homenagem ao compositor romeno, Valentim Gheorghiu, ouvíamos a música do génio e recuperávamos todas as imagens da nova pátria que enfrenta os Cárpatos como uma desafio () e não como um destino. 
Há uma Roménia que parece recusar-se a ficar presa na história, mas a futura catedral ortodoxa da salvação do povo revela que a tendência para a desmesurada grandeza é mesmo sanguínea. 
Afinal é possível falar de Bucareste sem falar de Ceaucescu, agora que deixamos  o palácio do Parlamento para trás.



segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O batismo de fogo

 

Está frio na manhã solarenga de Sibiu e respira-se uma atmosfera de lazer, há quem chegue ao centro histórico vestido de noivos (ele e ela), ou de convidados, o urbano laço preto na camisa branca, destoa da prole vestida de bordados e folhos, uma afirmação de ruralidade em dia de festa.
Sibiu é uma cidade muito antiga e não traja ruralidade no seu interior, medieval tardia na sua criação mantém a sua silhueta aristocrata, a dos boiardos do império austro húngaro e a igreja Luterana que mantém a etnia romena, ortodoxa, crente e campestre, fora dos limites das muralhas.
Mas neste sábado de manhã de Outono, as portas da cidade estão abertas a todos os credos, os velhos que jogam gamão nos jardins da praça da unidade, ou as famílias inteiras que se passeiam entre as três praças da cidade sim, eram famílias numerosas e vestiam, na sua maioria uma alma rural, enquanto a urbanidade local debicava cappuccinos nos cafés da praça grande e nas esplanadas das ruas adjacentes em grupos contidos e conversas eloquentes que o Sol da manhã não deixava esfriar.
E porque é sábado, a cidade alta e a cidade baixa festejam as cerimónias das suas vidas, devidamente resguardados da mundanidade das grandes praças


Na catedral ortodoxa, uma construção grandiosa do início do século vinte, já na extremidade leste  da cidade velha, um reconhecimento tardio da crença do povo, que precedeu a integração da Transilvânia no território da grande Roménia, a luz exterior invade a nave central do templo, filtrada pelos vitrais que narram os episódios da vida de Cristo e pelo silêncio dos devotos.
Apenas se ouve a voz do sacerdote e o tímido choro da criança que , rodeada pela familia, é despida em cima de uma mesa e mergulhada na bacia batismal, um batismo sem cedências nem compromissos, um ritual ortodoxo conforme jesus.
E depois a criança chorou alto e a família suspirou de alegria e de alívio, criança batizada e, de novo, na segurança do colo da avó.
Encontramos, mais tarde, os noivos e os respetivos convidados na igreja do convento das ursulinas, na extremidade ocidental da cidade velha, eram pois bons católicos, uma igreja decorada de flores, umas dezenas de convidados com fatos pouco usados e alguns mesmo de cores que não se coadunam com o imaginário de qualquer sacro matrimónio, mas não olhamos com muita atenção, teriam repetido o sim, nunca o saberemos porque, sem querermos, procurávamos as paredes abandonadas do antigo convento, agora um hub criativo em dia de vernissage, existe afinal uma terceira via na cidade de Sibiu, uma detalhada reportagem sobre o dia dos mortos, um novo Messias da arte vestido de preto, co chapéu de abas, rosto bicudo e gestos bruscos que se pavoneava entre as instalações, cenários góticos e uma estética incomoda, não no sentido de verdade incómoda, mas de grotesco incómodo.
Na tarde de sábado no recolhimento do mosteiro, longe dos olhares da praça, celebrava-se uma vanguarda desprovida a roçar o absurdo, ninguém se atreva a imaginar uma Roménia tradicional, enraizada na antiga tradição senhorial e rural, dos primórdios da sua independência.
Ioan Muntean é um pintor que confirma a existência de uma regra através do contraditório exuberante da exceção.
A sua exposição "É aqui" é um projeto de recuperação da memória do património construído da Igreja ortodoxa em locais isolados, exemplos de atos de fé das pequenas comunidades rurais.
Existe uma candura na pintura de Ioan, na forma como modela a luz, é como transmite a ideia de que, para lá da solidão e abandono dos locais pintados existe sempre a nossa aspiração a algo espiritual e superior ás dificuldades da realidade quotidiana, uma metáfora para a intimidade do ato de fé.
Mais do que um conflito de perspectivas ou um debate sobre o modelo de desenvolvimento de um país, trata-se sobretudo do elogio da diversidade e o respeito pelas origens.
Aleluia!




domingo, 1 de dezembro de 2024

Vila Katharina

 


Katharina foi a irresistível filha de um tecelão de Brasov que se tornou na adorada amante do conde Vlad Drácula, uma história de amor que durou mais de vinte anos.
Consta que teria sido revelado um coração de pedra, sob a porta da igreja negra, uma oferta de Vlad Tepes a Katharina que se transformou no mais grandioso símbolo de Brasov.
Antes do irlandês ter publicado, muitos séculos depois, o seu livro, que se tornou na obra-prima da literatura gótica do terror, o conde Vlad III, príncipe da Valáquia foi uma personagem histórica do imaginário romeno.
O irlandês Stoker nunca conheceu Katharina, nem se procurou assegurar do rigor histórico - e mesmo do seu registo dental - da vida do Conde e a sua história de amor iria certamente desapontar os milhões de fãs do conde vampiro.
Consta, de facto, que Vlad Tepes tinha o hábito de matar criminosos e otomanos através do empalamento, mas a fama internacional que detém de assassino sádico não é partilhada pelos romenos que o lembram como um símbolo de coragem e bravura pela forma como lutou contra o império otomano.
E nem o castelo de Bran, o suposto castelo do Drácula, terá alguma vez sido residência ou poiso de Vlad, pelo que parece que o irlandês imaginou uma história, um personagem e procurou um local que desse consistência ao mito.
O castelo de Bran continua a vender-se bem, mas a experiência tende a ser desapontante, especialmente para quem conhece as contradições da história.
E assim se destrói a reputação de um homem.
E, apesar do taxista blue de tesla, vestido de uns óculos que lhe aumentavam as órbitas, e  de um rosto que lhe acentuada as funções de mocho, como um protagonista de uma fita que a poeira já tinha varrido do tempo, se lamentar que nem a fama do Drácula, os romenos conseguem explorar  convenientemente, eu percebo as hesitações , porque afinal de contas quais romenos, que fama e que memória  querem eles  lembrar?
Na praça da unidade de Brasov - todas as cidades da Roménia têm uma praça da unidade - bem perto da rua Schei, onde vivia Katharina, as crianças brincam à volta da estátua do soldado defensor da nova grande pátria, os velhotes aquecem-se no sol do meio do dia, e na igreja de São Nicolau a mulher oferece doces ao sacerdote.
A essência do povo romeno havia de preferir uma história de amor com final feliz




Na pele do Rei

 


O palácio - eles intitulam se de castelo, mas é um palácio - Peles (também não tem peles, só madeira e não é conhecida a origem do nome) é muito popular, especialmente entre os de jovens estudantes que invadem os aposentos reais. 
Bem, a maioria percorre os corredores de cabeça baixa e só a levantam para esticar o braço e a respetiva câmara por cima das nossas cabeças contornando a ombreira das portas e registar metodologicamente as dezenas de divisões e antecâmeras da única referência real que vale a pena recordar.
Precisam de uma prova paternal de respeito pelos fundadores da pátria. 
A monarquia romena nasceu tarde e foi deposta cedo, por isso é estranho que o mobiliário do palácio de verão da realeza seja tão contemporâneo e esteja tão pouco usado, afinal de contas não podia ser de outra forma, é verdade que a monarquia na Roménia é sinónimo de independência, de uma certa modernidade e até de democracia, mas foi tristemente prematura, porque o único rei que governou com uma noção de estado, foi o primeiro, a monarquia foi deportada durante o terceiro reinado, e o segundo foi um déspota (aliás deposto por um general tão déspota quanto Carol II e, ainda por cima, fraco avaliador do futuro que entregou a nação aos russos devido a uma desastrosa aliança com Hitler.
Mas foi Carol I quem construiu este castelo de verão e os interiores são revestidos de uma madeira escura que não esconde as preferências do Rei pelas dinastias germânicas mas inspira confiança porque há um equilíbrio, quase austero, entre os locais de reflexão e de estudo ou patrocínio das artes e os de ostentação, que alimentam o imaginário inatingível pelo povo, e a manifestação do poder, medido pelo peso do cristal de Murano que paira sobre a cabeça dos hóspedes ilustres. 
E verdade que, quando a aristocracia romena passou a ter estatuto de reino, já a maioria das antigas casas reais europeias se preparava para sucumbir às guerras e à República, por isso sobrava a Carol I o espírito de missão 
Mas para as centenas de putos que invadiam os corredores do castelo de Peles, os aposentos dos reis, a extensa biblioteca e os diversos locais de trabalho, espalhados pelos três pisos do palácio, são apenas os diversos cenários de um compêndio de História, nos tempos - que eles julgam longínquos - da desastrosa Europa das nações. 
E eles são a primeira geração de paz que a Roménia permitiu que nascesse, e os primeiros que conseguem - sem riscos de omitir o essencial - tornar uma selfie, vital. 
Entretanto, o estado devolveu o palácio à família real, mas a princesa Margarida preferiu continuar a gerir o património imobiliário, a partir da Suíça




quarta-feira, 20 de novembro de 2024

A casa das histórias

 


Falar de Bucareste sem falar de Ceausescu é impossível
Eu queria, mas não consigo
Ele tentou destruir tudo o que não se parecesse com a imagem que ele tinha dele próprio, e quase conseguiu.
Bom, os camaradas, dezoito anos antes, já tinham liquidado uma aproximação de país moderno, seja-lhe feita a justiça. 
Mas a resiliência humana (e romena) é notável e a cidade velha, cercada de blocos cinzentos de não arquitetura brutalista e aniquilada de forma sistemática (como o bairro onde está o parlamento) ficou moribunda, mas manteve um fio de vida que a permitiu renascer
E o extraordinário (quem se lembra da destruição criativa de schumpeter?)  é que, no final do processo de restauração em curso vamos, com elevado grau de certeza, descobrir uma das mais originais cidades da Europa, obviamente dentro do conceito de cidade rafeira, sem estilo nem dono preciso, mas provavelmente mais resiliente às doenças da civilização e deveras disruptiva. 
Nada que estivesse nos planos de Ceausescu. 
Cidade da cruz, é o nome de um mosteiro e de uma capela, o que sobrou da demolição dos tempos, os frescos resistem, heroicos, mas sem face, porque os restauradores não sabiam como ressuscitar as feições dos santos. 
Cercada da fúria de betão dos camaradas, a freira resiste no local e o pátio interior do mosteiro recolhe as lápides de pedra recuperadas de outras igrejas destruídas, um depósito de memórias que ocupa, no claustro, demasiado do espaço antes reservado à meditação. 
 A carroça da cerveja é a cervejaria mais antiga da cidade (e quase nada é mesmo antigo em Bucareste) que se alimenta de personalidades e arte nova. 
O carrossel da luz é a livraria que antes já foi um banco, uma loja de roupa, já esteve abandonada e recuperou, das cinzas, em branco e ferro forjado. 
O quilómetro 0, uma tradição romana que o reinado de Carol, uma independência conquistada na ambição da grande Roménia, recuperou para assinalar a distância para as principais cidades do país. 
Um país que se desfez em cacos nas décadas seguintes e tornou incómoda e caduca o círculo de cidades desenhado em redor do zodíaco 
Uma igreja que se esconde por detrás de uma pizzeria com nome internacional. 
Tudo histórias para contar. 
A cidade das histórias que se contam sempre por detrás de uma qualquer tentativa para as silenciar, normalmente betão, ideologia ou simplesmente o quotidiano do presente das pessoas. 
Mas os rituais são vividos nas igrejas sem arrependimento por um povo que procura os padres que não se escondem no momento da confissão e que rezam em voz alta pela alma dos antepassados.
Só o povo parece zangado, não é fácil conquistar um sorriso à nação romena, especialmente se não cumprirmos os mandamentos do novo pacto da nação com o capital, e recusamos pagar os dez (mínimos) por cento de serviço nos restaurantes da capital.



segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Numa outra dimensão

 


Acordámos no dia menos um a olhar para o meio da praça, para a estátua do mártir Levski, que viveu cedo de mais para ser um herói e acabou enforcado, cinco anos antes da independência. 
Apesar de haver a consciência nacional de que a nação chega frequentemente atrasada aos seus compromissos – quase tão institucional como o Hino - no caso do republicano Vasil, o fundador do Comité Central, destinado para preparar, a partir da Roménia, a revolução contra o domínio otomano, ele chegou demasiado cedo para conspirar em território búlgaro e foi preso e enforcado em 1873.
Também para nós, aterrar em Sofia num voo noturno e chegar de noite demasiado precoce para ser manhã, mas demasiado tarde para ser noite, primeiro uma vista aérea das ruas desertas da cidade, uma cidade com iluminação tão frugal que parece que se apaga à medida que o táxi avança pelas avenidas dos subúrbios, sim, parece uma cena de espionagem filmada do outro lado da guerra fria, o chauffeur de táxi só conhecia o cirílico, prédios cinzentos, há um suspense a cada cruzamento que atravessa, em cada semáforo que passa a vermelho e finalmente chegados ao hotel de luxo, um luxo antigo, repleto de alcatifas moles e paredes forradas a madeiras nobres, um refúgio em que a música de fundo é sempre americana – tenho sempre esta imagem de duplicidade da guerra fria -  e antes do tempo, pré datada, uma alma velha, como afirmariam os especialistas, para nós que tínhamos obliterado uma noite inteira e não tínhamos portanto chegado a sonhar, foi o regresso a uma dimensão que só conhecemos numa outra vida.
Em Sófia, temos frequentemente a sensação de estarmos a levitar numa cápsula do tempo, um lugar em que nada parece corresponder ao tempo certo, antes do tempo no futuro que não aconteceu, provavelmente resultado do sacrifício precoce da escassez de heróis e de momentos gloriosos na História.
Mas quando ligamos o som da cidade ficamos congelados num passado, expostos aos avançados sinais dos tempos.
E os sons da Bulgária são antigos, existe um rasto de século vinte na musica de fundo do autocarro que nos tira do avião, nas fotografias a preto e branco das celebridades que enchem as paredes do restaurante do hotel, no ranger das curvas dos elétricos, uma cidade pejada de cabos e carris, no rádio do taxista que nos transporta, madrugada dentro, a estação ferroviária de Sever e há todo um mundo que está em vias de extinção, como os comboios lentos, em compartimentos de oito lugares, uma excentricidade de quem não deve ter bitola europeia que range em cada curva, a aguardar o anunciado comboio de alta velocidade que rasgará a Bulgária, de Istambul a Budapest, uma nova modernidade a caminho do expresso do Oriente.
E esta cápsula do tempo que se chama Sófia revela-se, uma manhã de cada vez, para lá das cortinas baixas do restaurante do hotel, que parecem querer dar-nos tempo para nos habituarmos a este sereno regresso ao passado.
E nós aproveitamos o tempo que a cidade nos dá e a cápsula, que preserva a nossa privacidade, mas não nos priva dos sons da descoberta, ziguezagueia entre as memórias da libertação e as indulgências das vidas comuns.
Ambiguidades felizes.
Na nuvem de fumo que joga xadrez no jardim da cidade, em frente ao Teatro Nacional Ivan Vazov, há dois que jogam e uma multidão que fuma, que dá opinião e que enche de fumo os jogadores, o ar puro do parque e as famílias inteiras de domingo à tarde.
Nos velhos que mendigam um pouco do esquecimento que o novo regime votou a quem vivia com pouco, mas só conhecia o garantido, e é uma imagem que não há geração que dissipe, uma herança que vem do Leste.
Sobraram alguns museus, outros mosteiros ou bilheteiras de transportes públicos e todos os outros que vagueiam pelos nenhuns lugares.
Tanto tempo depois, ainda há os expelidos do regime e os elétricos da utopia socialista, fotogénicos, mas pouco eficazes pois segundo Hristo eles eram bons a gastar, mas não faziam ideia de como se ganhava dinheiro, pelo menos o que querem gastar. 
Mas há uma nova movida jovem que povoa a paisagem encardida, os elétricos do realismo construtivista, os blocos de apartamentos construídos para alojar as famílias sobrelotadas que vieram alimentar as utopias industriais do regime, sem a consciência histórica do que isso representou para os seus pais. 
Dualidades que não deixam de nos intrigar.
No final da tarde de segunda-feira, somos envolvidos pela multidão de jovens que saem da escola e se cumprimentam com universais choques de punhos, e conversam muito, não há, naquele passeio da cidade fora dos seus limites, telemóveis nem redes sociais que bloqueiem a animação e os abraços, não fosse o cirílico a primeira língua não latina a ser lida ao papa, em Roma.
Mas em Sófia, a idade é um tempo relativo. 
Uma capital criada pelo terceiro império (talvez só dinastia porque o império foi reduzido à pequenez que a memória não conhecia) e, a partir de uma aldeia de doze mil habitantes e umas quantas estalagens, construiu-se uma metrópole que cresce, mas nunca envelhece, segundo os próprios. 
E, quando nos libertámos da cápsula do tempo, em direção ao presente, sentados na antecâmera do futuro, no restaurante que teimava em chamar-se Cosmos, a iluminação simulava os planetas de uma galáxia desconhecida, mas radiante, e o vinho búlgaro, o sorriso da miúda que servia a mesa, os sabores do prato e Pavlova final eram cósmicos.
E na última ceia de Sófia, entendemos que o orgulho deles se constrói de pequenos triunfos.






sexta-feira, 8 de novembro de 2024

O refúgio do segundo Império Búlgaro

 


A floresta de Rila é, segundo Hristo, um local de profunda espiritualidade, desde que João 
dela fez local de meditação, nos tempos do primeiro império búlgaro. 
O mosteiro de Rila foi construído para albergar os monges que seguiam os ensinamentos do mestre João, durante o auge do segundo império medieval búlgaro. 
Depois, as trevas abateram-se sobre as montanhas e o vale de Rila e durante quase quinhentos anos não houve fé que resistisse aos otomanos, que se tornaram depois da conquista do reino da Bulgária, os novos senhores de Constantinopla.
A igreja do mosteiro foi construída no século dezanove, para recuperar os terrenos da fé, mas também o esplendor dos tempos medievais, quando a Bulgária fora grande e poderosa. 
Não foi suficiente porque as potencias da época não queriam uma Bulgária grande, e estas são as palavras de Hristo, e nós acenamos, porque percebemos as dificuldades dos pequenos. 
O São João búlgaro, Ivan na sua forma eslava, viveu nos anos 800, fez milagres antes de se refugiar, primeiro no vale e depois numa gruta na montanha, onde viveu nos últimos cinco anos da sua vida, em profunda comunhão com a natureza. 
Segundo consta, e diz quem sabe, que a afirmação da nacionalidade búlgara foi, no período de independência, antes de tudo, uma afirmação da sua religião e dos seu ritos, e não tanto uma afirmação de contestação política contra os otomanos ou de afirmação de uma entidade própria, que eles próprios reconhecem não ter. 
E isso explica a turbulenta relação deste povo - numa versão muito lata que os contemporâneos gostam de invocar, incluindo os Macedónios e os Trácios e uma parte dos Gregos e outros povos Balcãs - com Roma e com Constantinopla, e que justifica a escolha dos russos como uma terceira via que os ajudou a expulsar a autoridade dos otomanos e a libertar-se da dominância cultural dos gregos. 
E isto explica também a veneração do santo Ivan. 
Portanto, depois de expulsarem os turcos, construíram uma igreja no local de um convento do século treze, e pintaram as paredes e os tetos de cenas bíblicas, vivas e muito explícitas em que, na cena do juízo final, os pecadores tinham indisfarçáveis semelhanças com os turcos.
Tudo em homenagem ao santo João, cujo retiro, cujas relíquias, mistérios, lendas e até talvez os ossos datam do longínquo século nove, que os peregrinos descobrem, em veneração no altar.
Sim, hoje na igreja do mosteiro há quem jure que os crentes abriram o túmulo de João e acariciaram os ossos do santo, uma relíquia para quem precisa de se alimentar de provas vivas de fé. 
Construíram um tesouro de fé muito visual, em cores que apelam à crença, num gesto de evangelização que se entende por quase cinco séculos de ausência, longe de imaginar que os outros russos, não os que os libertaram dos otomanos, mas aqueles que invadiram a Bulgária, umas décadas depois, com o pretexto dos Búlgaros serem aliados de Hitler, eram ateus e que não tinham fé nem amor próprio por todos os mosteiros que encerraram.
(a narrativa da libertação do jugo nazi, não se aplica no exemplo junto) 
Rila não fechou, mas a palavra mosteiro foi convenientemente suprimida e as cenas bíblicas encerradas nas portas de um museu agnóstico. 
E, tal como em todas as renascenças do orgulho nacional, no final do século vinte, elevou-se o complexo a património do mundo. 
Hoje, nas montanhas, nos territórios dos ursos e dos alces, subimos por caminhos pedregosos à procura da gruta de Ivan. A vegetação era densa, entramos curvados no refugio do João mas Hristo assegurou-nos que, só os livres do pecado, seriam capazes de alcançar a fonte de água pura e o santuário no cimo da montanha. 
E mesmo sem grande crença na adoração dos ícones ou relíquias, trepamos as rochas e escapulimo-nos pela ranhura das rochas que cobriam a gruta do santo e bebemos da água da montanha e do seu criador.
É sempre reconfortante pensar que estamos do lado dos búlgaros, dos crentes e um alívio estarmos devidamente puros, e portanto, do lado certo do juízo final.




quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A Praça da Tolerância

 

É verdade que no centro de Sofia parecem conviver todos os credos e todos os templos têm um adjetivo que soa a verdade absoluta, a mais antiga igreja cristã em funcionamento, construída na época do império romano, a sinagoga, o maior templo sefardita da Europa, construída, imaginem, por judeus ibéricos , em fuga da inquisição, a mesquita construída por Mimar Sina, que construiu a mesquita azul, uma das mais antigas da Europa e mais uma das catedrais ortodoxas, esta apenas famosa por ter sido alvo de um atentado bombista perpetrado pelo partido comunista que, em 1925, pretendia matar o rei e instaurar a República. O rei sobreviveu, mas morreram mais de cem súbditos, aparentemente crentes, mas também, simplesmente, povo. 
A monarquia sobreviveu e foram precisos mais vinte anos, uma guerra, uma política de alianças desastrosa e uma geografia infeliz para que os comunistas se transformassem nos novos senhores da Bulgária. 
Mas no domingo de manhã da espiritualidade búlgara apenas prevaleceu a vontade do rei Kaloyan, que no século doze, durante o segundo renascimento do império búlgaro, teve uma mudança de crença, um verdadeiro "change of heart" , derrotou Balduíno I, o primeiro imperador latino de Constantinopla e converteu o seu povo à ortodoxia. 
Nas cerimónias ortodoxas, os sacerdotes estão de costas para os fiéis, escondendo-se no altar e escondendo o altar dos olhos dos crentes, e dos outros, como se tivessem receio que os mortais  contaminassem a essência do diálogo com Deus, mas os sons emanam uma fé oriental, debaixo dos frescos da mais antiga igreja cristã da Bulgária, São Jorge da Rotunda, ou na catedral russa de São Nicolau ou debaixo das cúpulas de Sveta Nedelya. 
E, neste domingo de manhã, as igrejas estão cheias de crentes, toda a cidade beija os ícones, venera os altares dos santos orientais e canta, em pé, debaixo das cúpulas douradas, recebendo os sacerdotes que saem dos altares e se deixam cercar pelos crentes, mas sobretudo pela diversidade, dos novos, dos muito novos, alguns velhos e pelo incenso que emana do fumo das velas, há uma atmosfera de redenção no final da cerimónia, mesmo para os matulões de cabeça rapada, tatuagens bélicas, cabedal vestido e olhos de um azul que gela, só de olhar. 
Mas alguns santos não têm olhos, reza a história ou a lenda, porque os otomanos transformaram as igrejas em mesquitas e não queriam os santos ortodoxos a olhar para eles.
E, como lembrança dos quinhentos anos de paz otomana, os búlgaros não se esquecem do imposto de sangue que significava a obrigação de entregar um filho para combater no exército otomano. 
Por isso, com o rigor metódico que a vingança produz, poucas mesquitas ficaram intactas. 
Por isso hoje não há turcos na Bulgária, há quando muito, búlgaros islamizados, afirma o discurso oficial, uma utopia que não se reflete naqueles de tez escura e de olhar de quem não tem raízes por aqui, que rondavam a mesquita, no centro da praça que é antes um conjunto de praças e de ruas, sobre as quais é possível desenhar um quadrado, eliminando as ruas, como se demolíssemos as paredes, uma destruição necessária para a construção de um grande ideal. 
A praça da tolerância é uma visão irresistível do subconsciente humanista que comove a sensibilidade ocidental,
Percebe-se a ideia, mas os cartesianos dirão sempre que não é uma praça. 
E as lendas, a história e a memória dos povos inviabiliza, amiúde, os finais felizes. 
O castigo é normalmente a mais convincente forma de apelar à memória dos milagres de todos os santos, enquanto esperamos pelo dia do juízo final.
Foi a última imagem que me ocorreu antes de me concentrar a procurar os meus sapatos entre a multidão de calçado eclético que povoava a porta da mesquita Banya Bashi.




quarta-feira, 31 de julho de 2024

Sonhos de uma noite de Verão

 


Foi apenas um sonho de meia noite, entendida como uma mera metade, como se fosse possível, mas é, ter duas noites de sonho e de sonos diferentes na mesma noite.
Ou melhor, na primeira metade da mesma noite, um sono tranquilo e sem memórias e outra metade povoada de sonhos e agitação, tão cristalinos depois do amanhecer que só podia ser premonição.
Tinha viajado para Mumbai e tinha-me instalado na cidade velha, aquele pedaço de Mumbai que é cuidadosamente escondido dos estrangeiros, ruelas que não deixavam o sol entrar, mas o sonho não tinha cheiros e havia , na clarividência das imagens, um filtro social de auto censura, as ruas eram pitorescas, não pobres, todos as imagens reforçavam as cores de uma multidão orgulhosa e omitiam as misérias que escorriam pelos esgotos dos becos. 
Nada, o sonho era seco e aspiracional, uma espécie daquele Oriente asséptico que só existe nos filmes. 
Certamente influencias do orientalista Martin, o protagonista do romance de Abdulrazak Gurnah e os mistérios do seu desertor, nos confins do império britânico da costa oriental de África, mesmo encostados aos primórdios do século vinte.
Na imensa palete de culturas e de povos que coabitavam Zanzibar, a história desenvolvia-se em redor de uma família de comerciantes indianos oriundos de Calecute, Mumbai era afinal um equívoco, afinal de contas os sonhos não são assim tão precisos.
E o romance é um retrato do confronto de culturas, árabes, Somalis, Hindus e o império colonial britânico que ainda acreditava que, tal como na América, os indígenas seriam liquidados pelo tempo.
Não foram os odores exóticos do corno de África que me provocaram a agitação noturna de uma meia noite de verão, entendida como já sabemos, como metade de uma noite.
Nem a visão insensível e preconceituosa do colonialista branco.
Nem o despeito nostálgico do escritor refugiado.
Foi o mosaico complexo de culturas que me fez deambular, qual sonâmbulo, pela Mumbai deserta, na procura da propriedade que os meus antepassados me tinham deixado como herança, pelo menos era desta forma que o narrador do sonho me apresentava a mim próprio.
Era afinal uma casa modesta num bairro modesto e uma prole numerosa do ramo indiano da minha família que me esperava, de braços abertos debaixo da porta do império, junto ao mar da Índia. 
Acordei sem entender porque é que havia uma prole indiana que era minha, e aí o sonho não esclareceu, não havia nenhum Albuquerque na história, nem nenhuma possibilidade de pertencer a uma prole de casta incerta, numa aparição tão fugaz.
Mas no romance de Gurnah havia uma outra história, a de um amor proibido entre o orientalista britânico Martin e a irmã do comerciante indiano muçulmano Rehana, uma história ocultada dos pormenores com um pudor que o autor pouco espaço deixou para a imaginação do narrador dos sonhos.
Por isso mesmo acordei sem conseguir explicar a minha numerosa família indiana, porque, depois de acordado, a única imagem coerente do sonho era mesmo a porta do império e o oceano indico.
Mas, nem por isso, me esqueci da razão por que razão tão materialista viajei à India num sonho de Verão.
Chamava-se Fredrik e era o Administrador branco do Império Britânico nos confins do Corno de África, acabado de chegar da India.


segunda-feira, 22 de julho de 2024

Sons do velho Sul

 


Dentro das muralhas mora a cidade velha, ou a vila adentro como ela gosta de ser tratada. 
A velha senhora mantém-se reservada, a calçada é irregular, as pedras são de tamanhos todos diferentes e intervalos tão imprevisíveis que anunciam desastre em cada pedaço de ruga que a rua tem. 
Este semblante rústico da velha senhora, entenda-se como uma metáfora da cidade velha de Faro, intimida as hordas de estranhos, o que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Entenda-se como uma metáfora do norte de África, como se fosse possível ouvir os sons do bazar, com tanto mar por permeio. 
É verdade que a indolência é despertada pelo verão e pelos fins de tarde de domingo e, ao redor do grande edifício amarelo, a quem chamam de fábrica da cerveja, mas que nunca foi, ouvem-se outros sons. 
Escondidos por detrás dos portões fechados, pintam-se as cores do festival Mar Motto, um festival de manifestos da tão efémera arte urbana a favor de um mar eterno.
Porque até as causas precisam de dia de folga, os manifestos de vilhs estão, como a velha senhora, em modo reservado. 
Mas na associação recreativa há uma menina vestida de negro, protegida por tatuagens com significados à prova de estranhos e provavelmente (ou não) um piercing solitário, não posso garantir, porque os meus olhos ficaram presos na caixa de madeira onde ela guardava as notas de cinco euros, sim, porque hoje há concerto, e os sons também são do Sul, a banda arrasta-nos para os sons do improviso e do jazz e a voz da miúda que canta preenche todo o pátio, em espiral, uma espécie de tornado invertido, e a miúda é compositora e o baterista tem um ar fixo nas paredes do pátio e o tipo do baixo, bate o pé e marca o ritmo, há toda uma conspiração de sons e de cumplicidades que envolvem a vintena de mesas, o mestre do som, os menos jovens de olhos gastos, mas felizes, que preparam as bebidas e que perguntam pelo nosso bem estar, como fosse possível estar mal, no fim de uma tarde de verão com um copo de vinho na mão e um som de enternecida nostalgia (ou seria apenas ao ritmo da decadência da alma velha?) na associação recreativa e cultural de músicos, despojados de tudo o que a arte não precisa. 
E ninguém estranha que, neste local do culto de pureza dos sentidos, afinal de contas as associações recreativas fazem parte do meu passado suburbano de tudo o que a cultura significava para nós, as multidões de estranhos se mantenham longe, e até o ruido dos aviões em aproximação à pista, longe de representar uma intrusão nos sons do pátio, da diva, dos músicos e da audiência que sorve a diferença em pequenos goles de vinho branco, acentua a singularidade do momento congelado no tempo, essa memória intensa mas efémera, do culto subterrâneo e pós-industrial em que qualquer um de nós se poderia ter transformado. 
Quando anoitece, a cidade veste o fato de maestro, no magnífico auditório do teatro das figuras, e a orquestra de gala oferece um espetáculo servido como uma refeição, palavras do maestro Martim, uma entrada suculenta da opera dos três vinténs de Kurt Weil, quando o Jazz invadiu despudoradamente a música clássica, uma história de gente menos recomendável mas também da mulher loura e fatal, a história que tem vários momentos, ele queria dizer andamentos e disse-o de tal forma como se a música sem letra pudesse contar uma história, sim, é verdade que a dele, a de Kurt Weil contava, "quem esteve em Berlim, sabe do que eu falo" o maestro tem um humor fino, mas não permanece imperturbável quando nos empurra cem anos para trás e nos puxa de volta, cem anos são apenas cem anos e o seu sentido de humor é também uma evidência de que conseguimos beber a história da cidade, qualquer que seja a época em que a visitamos, tal como os andamentos desta coletânea de Weil são as vieiras gratinadas do concerto. 
Cem anos é, pois, o mote da noite de gala, cem anos tem música de Gershiwn, uma rapsódia de azul, mais de quinze minutos de uma sinfonia de sons intemporais, o prato principal é servido em Manhattan, os loucos anos vinte na cidade de todos os ruídos e todas as melodias. 
Não envelheceu um minuto, assegura-nos o maestro e o solo de piano prolonga a magia das noites de Verão, cem anos depois sentimo-nos renascidos pela alma velha, não são sons do Sul, mas este Jazz do norte tem as mesmas raízes no sul profundo de África, sim também no teatro das figuras, é apesar da multidão contida que olha para o palco, sente-se a mesma brisa quente que favorece a propagação dos ventos, do silêncio e dos perfumes que se transportam, com uma dose temperada de calor, por cima da vegetação rasteira da ria, muito para lá do Sul cristão, onde o mar termina e recomeça o continente. 
Opíparo e sem ressentimentos. 
A sobremesa foi servida numa taça de cristal, sabores urbanos de Cole Porter, sem intervalos nem explicações porque já aprendemos que uma música sem letra consegue contar uma história. 
Night and Day.
Doce, crocante, quente e frio, sem compartimentos. 
Hoje descobrimos que, em Faro, ainda vive a alma velha do Sul, que intimida as hordas de estranhos e os mantém à distância.



segunda-feira, 15 de julho de 2024

Os fantasmas da liberdade

 


Vista da margem sul, da encosta do convento de Santa Clara, os anos não parecem ter passado por ela, sem rugas no horizonte, as fachadas da cidade histórica coradas pelo Sol da tarde por ser envergonhada e provinciana, e há um sotaque beirão que não descola da boémia que cheira a cerveja e invade as calçadas que serpenteiam a Sé velha. 
Olhando com atenção redobrada por cima das pontes, há um espelho de água que absorve toda a tradição que se acumulou nos séculos de vida académica e de conhecimento partilhado. 
E de boémia incontida. 
Da margem esquecida do Mondego, vive-se uma atmosfera de Outono nos jardins do convento apesar do Junho avançado, que o calendário não consegue desmentir, provavelmente porque é domingo à tarde e as tardes de domingo são tristes e nos impelem para as memórias do passado. 
Ou provavelmente porque as minhas memórias de Coimbra viveram todas do outro lado do rio, onde a ação acontece, seja qual for a geração ou a década. 
Ou porque o convento se despojou da clausura, dos hábitos austeros, orações e aí jesus, sim, quando Coimbra era também um centro do roteiro da religiosidade, uma porta da religião para o mundo laico da ciência. 
Do outro lado do rio, a uma distância segura, que não comprometa nem os rituais, nem as crenças, nem o acesso privilegiado a Deus. 
Abanava a cabeça, quase descrente, não filha, não pode ser aqui, não é aqui que mora a Bienal, Ano Zero dos fantasmas da liberdade. 
Enquanto olhava para as minhas memórias de Coimbra, há lugares assim, que passam incólumes à nossa passagem, e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de cheiros a serra. 
Mas, afinal, a bienal mora mesmo aqui. 
Os corredores do convento alternam entre os despojos de um local em vias de perder a sua memória, uma pré-ruína de vazio do qual sobram apenas gritos de morcego produzidos digitalmente que percorrem os tetos do convento ao ritmo das correntes de ar, e as interpretações ousadas do presente, para que nada nos parecesse sequer familiar, como se mais importante do que o significado das coisas ou das palavras fosse a liberdade de expressão sem significados precisos. 
Arte contemporânea, portanto. 
Com locais de descanso, intervalos nas celas abertas, janelas para a cidade, sempre no chão pejado de almofadas, como se a liberdade também precisasse de pausas e de momentos de contemplação 
Há referências objetivas dos curadores da exposição ao filme de Luis Bunuel de 74, ao cinquentenário da Revolução dos Cravos, e ao centenário do manifesto surrealista de 1924.
E há uma referência muito explícita ao significado literal das palavras, os fantasmas da liberdade remetem-nos para a disputa entre o desejo e a realidade. 
Quase um lamento sobre as limitações da liberdade, não enquanto conceito, mas enquanto "paz, pão, habitação, saúde, educação" 
Apesar de, na Bienal Ano Zero, as instalações não sejam, de todo, um slogan renascido dos cinquenta anos da história da liberdade. 
O experimentalismo do século vinte e um já não se alimenta de memórias e os jovens artistas não perdem tempo a pensar como é suposto se conquistar a liberdade. 
Na outra margem, o dois cavalos engasga-se enquanto procura alcançar a praça da República, já na década de oitenta era uma relíquia, sempre sobrelotada a juventude era rebelde, mas não demasiado, ainda havia resquícios da revolução nesta geração que nasceu tarde de mais para ser verdadeiramente rebelde e anárquica e estávamos todos a ficar fora de época, quem havia de se lembrar de voltar a Coimbra sem ser estudante, procurávamos aspirar as últimas migalhas de aventura, álcool, festas e inconsciência, antes da idade adulta começasse a assumir o controlo da tua liberdade. 
O dois cavalos é a única memória nítida que me resta desta época de vapores e libidos exacerbados. 
Coimbra, finais da década de oitenta. 


Pendurados sob os tetos do corredor do primeiro piso do convento, os cartazes de Carla Filipe são únicas imagens da revolução e das memórias que vivemos dos tempos em que o tempo ainda era, para nós, imortal, as caras das mulheres que substituem os rostos dos manifestantes, não eram relevantes as causas porque o manifesto era feminista, e os tons vintage dos cartazes eram a afirmação da nossa época, em que a liberdade não era um conceito, tinha corpo, imagem, cor e rosto humano. 
São também, e afinal de contas, apenas memórias do tempo das nossas liberdades conquistadas, no tempo em que teve de ser, nem sempre as melhores memórias, quando queríamos ser livres mas não sabíamos o que verdadeiramente isso representava e quando percebemos que a liberdade significava muito frequentemente solidão e desassossego. 
E em Coimbra, não há vestígios da passagem do tempo e só as nossas rugas se refletem nas águas do rio que enchem a paisagem de uma nostalgia bem resolvida. 
Sem vapores nem libidos exacerbadas. 
Quantos cavalos são necessários para mudar o mundo? - questiona-se a artista Priscilla Fernandes, mas o curador apressa-se a assegurar que se trata apenas de uma sátira, mas nas paredes do fim da exposição, os cavalos surgem libertos de conotações de dominação, heroísmo, autoridade e força ostensivo, dedicando-se ao lazer, um privilégio que se julgava exclusivo dos humanos. 
Quando curvávamos, a todo o vapor, no Dois Cavalos da República de Coimbra, sabíamos, pela experiência dos outros, que nunca iríamos virar, e a suspensão do Citroen era a única garantia que a nossa liberdade precisava. 
Não há fantasmas que durem sempre, quando insistimos em cultivar o imaginário da liberdade 
Mesmo que tenhamos de regressar às longínquas memórias de Coimbra.




domingo, 7 de julho de 2024

O último comboio para o Estoril

 

Há lugares assim. Quando o mundo se desfaz em insanidade, uma elite de gente que antecipa o Apocalipse, refugia-se a uma distância de segurança, e a periferia mais ostracizada ganha uma nova luz, como se o miúdo gordo e caixa de óculos, um fantasma que percorria, solitário, os corredores da escola, renascesse como o mago da bola, uma nova moda em que todos ansiassem ser olhos míopes e corpo de panda. 
Em tempos de precipício, as pessoas encontram conforto na imperfeição e nas dificuldades de socialização, como se fosse uma proteção contra a fúria dos infames.
Na casa Sommer, em Cascais, o projeto de autor chama-se blackout, mas a atmosfera de filme negro que cobre o portfólio de quarenta e cinco fotografias que, a partir do presente, retratam o início dos anos quarenta no novo eixo de centralidade e de paz da Europa de uma escuridão esculpida a ferro e fogo, recorda-nos sobretudo a bipolaridade que corrói a mente dos refugiados, entre a euforia de poderem respirar a tranquilidade e a culpa de a respirarem enquanto os outros aniquilam o que ainda sobrou das suas memórias. 
Uma dicotomia construída de glamour e de conspirações sonhadas, por aqueles que sabem, mas ainda ousam duvidar, que vão ser párias para todo o seu futuro. 
Lisboa, Estoril algures depois de Junho de 1940 e o preto e branco de alto contraste das fotografias do autor e das provas documentais que garantem que aqui se viveu a antecâmara do fim do mundo, e uma multidão de seres de hábitos e roupas estranhas mudaram a paisagem mental dos nossos atordoados antepassados. 
Como se nascesse na pradaria, e sem tempo de construção, uma metrópole alienígena. 
Nas vitrines da exposição do Alexandre, uma capa do Diário de Lisboa de um qualquer dia de verão de 1943, noticiava as manobras de simulação dos bombardeamentos em Lisboa que nunca vieram, o mesmo jornal que citava fontes do Terceiro Reich para desvalorizar os resultados da ofensiva soviética e fontes de Londres para noticiar as missões aéreas sobre Berlim. 
De repente, o regime que não gosta de se questionar, sente-se assolado pelas subtilezas da neutralidade. 
A história do autor conta outras estórias, é humana a necessidade de construir enredos que facilitem a compreensão humana do colapso de valores que representou a última guerra mundial, como a paranoia dos ataques aéreos surpresa e a do amor impossível entre uma refugiada alemã e um espião inglês. 
Dentro da casa Soller, os visitantes são espaçados, mas lá fora, e apesar do sol ser um sorriso sobre o azul, o vento não segura as copas das árvores, nem as bandeiras do porto, nem as saias das mulheres de vestidos brancos e óculos escuros e, de repente, há regressos do passado que moldam o presente, e as ruas do presente da linha do Estoril estão lotadas dos novos expatriados, que fazem compras no mercado saloio e inflacionam os refúgios dos locais.
E não há ainda sinais de mundo em carne viva. 
As saias das mulheres de vestido branco e de óculos escuros são, claro, apenas uma metáfora à nostalgia dos anos quarenta, uma tentativa (aliás indecente) de procurar semelhanças nos tempos de hoje, uma insinuação de que poderemos estar, mais uma vez, à beira do abismo, apenas alegorias usadas para manter o interesse na prosa, porque hoje a diversidade do mundo que se instala por cá, já não causa temor nem espanto, e já sabemos todos que não é possível prever o futuro só com base no conhecimento passado. 


E, hoje, a linha de Estoril é um promontório de ventos cruzados, às dezenas de línguas e dialetos da Europa que se estendem desde o Norte e desde o Leste, sobrepõe-se um sotaque que sobrevoa o anticiclone dos Açores, há afinal um vento forte que sopra do ocidente e de repente, só depois de termos visitado o passado na casa de Sommer, nos passou pela cabeça que a Linha, nos confins do mundo, segundo a geografia chinesa e a civilidade europeia, é testemunha da inversão do último longo ciclo de emigração no mundo. 
Ann, a minha nova amiga de Miami assegurava-me hoje que há uma febre lusitana daqueles que sabem onde fica a Europa. 
Sim, Ann, eles andam por aí, e não há nenhuma iminência que pareça justificar esta nova centralidade do mundo ocidental, na periferia saloia do Atlântico Norte, mas não consigo deixar de pensar que tem de haver algo de premonitório neste súbito fascínio pelas festas populares, pelas sardinhas assadas e pela indolência dos nossos brandos costumes e até pela nossa falta de ambição. 
Falta o glamour, as sombras contrastadas da urgência e a intensidade das vidas que antecedem a iminência do fim do mundo, mas, ao contrário do que se passava na geração de quarenta em que Lisboa era a única ponte possível para a América, estes parecem vir para ficar. 
Veem afinal a fugir de quem? 
Lá em baixo, para lá da baía, há uma multidão de risos e de gente feliz, em harmonia com a terra prometida. 
Às cinco em ponto, na gare da estação ferroviária, o comboio apitou uma vez só e, quando se afastava ronceiro, mas determinado, a caminho do pôr do Sol e de Lisboa, parecia dirigir-se a um final perfeito de um filme dos colonos pioneiros do antigo oeste. 
Mas o comboio não era a vapor e a última imagem que retive na memória já não era a preto e branco. 
E, na exposição da casa Soller, cada imagem tinha um número e um adjetivo.
Muitos deles premonitórios.